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Revista on-line do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

No.11 – jan-mar/05

sumário

  • Editorial
  • ENSAIO
  • Eventos
  • Uma questão de métodos
  • Resenhas & Sinopses
  • Informe publicitário
  • Expediente

DATA VENIA é a revista eletrônica do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. De periodicidade trimestral, seu conteúdo não necessariamente coincidirá com o pensamento da FEBASP, mantenedora desta Instituição, mas será de inteira responsabilidade dos autores que subscreverão suas respectivas matérias.
As colunas serão alimentadas pelos professores do Curso, contando-se também com a colaboração do alunado, da Comunidade Febaspiana como um todo, e apenas marginalmente, ocorrerá a participação de colaboradores externos à Instituição.

Além de divulgar as notícias relacionadas ao Curso, as matérias publicadas reportar-se-ão às sociedades nacional e internacional, através de textos inéditos e não muito extensos, acolhendo-se também material redigido nos idiomas inglês e espanhol.

O conteúdo divulgado em DATA VENIA pautar-se-á pelo balizamento ético e pluralismo das idéias, as quais autoriza-se sua reprodução por quaisquer meios desde que se mencione suas respectivas fontes.

Editorial

O Papa e o Fim do Comunismo

A morte de João Paulo II pode ser vista como a apoteose de seu longo reinado de 26 anos no trono de São Pedro. Aos gritos de “santo súbito”, seu corpo seguiu – acompanhado por milhões de olhares mundo afora – para a cripta antes ocupada por João XXIII, ironicamente o papa que abriu as portas da Igreja para a esquerda católica dizimada no último pontificado.
O ex-ator, Karol Wojtyla, utilizou-se como poucos dos meios de comunicação para atingir seus objetivos claramente conservadores. Com gestos simpáticos e plenamente adaptados à sociedade do espetáculo, como beijar o chão de cada país que visitava, esquiar nas férias e saudar multidões a bordo do papamóvel, conquistava os fiéis e construía uma imagem de pontífice próximo do rebanho ao mesmo tempo em que, internamente, operava uma verdadeira “contra-revolução”. Durante o seu papado, centralizou o poder, impôs claros limites às questões morais e na relação da Igreja com a Ciência, além de punir teólogos mais progressistas, entre eles os artífices da Teologia da Libertação. Como muito bem colocou Tariq Ali, “João Paulo II sempre adorou as câmeras de televisão. Nesse sentido, acho que sempre agiu como um político inteligente e de direita. Ele pôs a mais moderna tecnologia a serviço de um papado digno da Idade Média”. (1)
Nestes 26 anos, João Paulo II foi também hábil em erigir alguns mitos em torno da sua personalidade. Ficou conhecido por defender os direitos humanos e a democracia. No entanto, oportunamente, poucos agora se recordam dos esforços da Santa Sé para desestabilizar o governo sandinista na Nicarágua e a calculada omissão com relação a ditaduras sanguinárias como a de Pinochet no Chile e a de seus colegas militares na Argentina.
Nada se compara, porém, à idéia de que João Paulo II derrubou o comunismo. Esta ilusão, que adquiriu o status de verdade irrefutável, contaminou os comentários da imprensa, de analistas mais afeitos a dogmas do que à realidade, e de importantes líderes políticos nos últimos dias. Em nota oficial, afirmou o presidente George W. Bush: “O papa João Paulo II deixou o trono de São Pedro da mesma forma como ascendeu a ele – como testemunha da dignidade da vida humana. Em sua nativa Polônia, essa testemunha impulsionou uma revolução democrática que varreu o Leste Europeu e mudou o curso da história”. Na mesma linha, declarou o chanceler alemão Gerhard Schröder: “Ele influenciou a pacífica integração da Europa em seu pontificado de várias formas. (…) O papa João Paulo II escreveu a história. Por seus esforços e com sua personalidade impressionante, ele mudou o nosso mundo”.
Nada mais próximo da pura fé do que afirmações como estas. Não se trata de negar aqui a importância política de João Paulo II – mesmo porque isto seria tão injusto e falso como as declarações acima -, mas sim, de jogar um pouco de luz sobre os eventos que marcaram o final do que alguns chamam de “O Breve Século XX”. Os anos 80 foram de profunda crise econômica para todos os países do Leste Europeu e para a própria União Soviética (URSS). Nesta década, ficou patente a incapacidade dos sistemas centralmente planejados para manter altas taxas de crescimento e acompanhar as grandes economias ocidentais. O sistema que se dizia “superior” ao capitalismo não conseguia mais atender às demandas de seus cidadãos. Na década anterior, a situação fora controlada graças à grande quantidade de capital disponível no mercado internacional, utilizado na aquisição de bens de capital e consumo em quantidade suficiente para manter as economias em funcionamento e as populações sob a ilusão de que o “mundo marchava para o socialismo”. Porém, no início da década de 80, com a crise da dívida, as economias do Leste Europeu degringolaram definitivamente. Paralelamente, o “socialismo real” mostrou-se absolutamente incapaz de ingressar na nova economia de alta tecnologia – fundamental para a expansão da atividade econômica e para a produção em massa de bens de consumo de qualidade. As tentativas de reforma do sistema, por sua vez, falharam completamente, esbarrando na burocracia e nas próprias contradições da economia centralmente planejada.
Não demorou para que a crise econômica e a visível piora nas condições de vida das populações da Europa Oriental e da URSS acarretassem em conseqüências políticas. Com o desenvolvimento das comunicações e o incremento do turismo internacional, não era mais possível insular as populações destes países e evitar as comparações com os vizinhos ocidentais, o que representou um duro golpe para a legitimidade dos regimes. Como argumenta Eric Hobsbawm, “a aceitação do comunismo pelas ‘massas’ dependia não das convicções ideológicas ou outras semelhantes, mas de como julgavam o que a vida sob regimes comunistas fazia por elas, e como comparavam sua situação com a de outros. Assim que não foi mais possível isolar estas populações do contato e conhecimento com outros países, seus julgamentos foram céticos”. (2)
Sem legitimidade política e à beira do colapso econômico, o “socialismo real” desabou como um castelo de cartas no Leste Europeu entre agosto e dezembro de 1989. A recusa da URSS em agir para manter o status quo na região era um claro indício de que o país não mais conseguia carregar o fardo de ser uma superpotência e que seu destino, como a história mostrou, não seria muito diferente.
É importante notar que nenhum dos regimes da Europa Oriental foi efetivamente derrubado – no sentido revolucionário clássico. Todos pereceram por suas próprias deficiências e pela incapacidade de acompanharem o desenvolvimento capitalista ocidental. Neste processo, João Paulo II atuou mais como uma figura simbólica do que como um real líder vanguardista, o que não impediu que acumulasse um enorme capital político e diplomático que lhe seria muito útil durante todo o seu pontificado.

Notas
(1). Entrevista publicada pelo jornal Folha de São Paulo no dia 4 de abril de 2005.
(2). HOBSBAWM, Eric (1995). Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, p. 480.

Oswaldo Amaral
Mestre em Relações Internacionais e docente do
curso de RI do Unicentro Belas Artes.

Ensaio

Lula-lá: continuidade e ruptura – Parte I

Por Nilson Araújo de Souza (1)

1. À moda de introdução

O governo Lula já fez seu segundo aniversário. Já é possível, portanto, dar-se ao desafio de realizar um primeiro balanço das suas ações e assim começar a compreender a sua natureza. Certamente, análise alguma tem a possibilidade de, neste momento, ser conclusiva, na medida em que ainda faltam dois anos para o término do atual mandato e muita água ainda há de correr debaixo da ponte. Mas, a partir da análise dos dois primeiros anos, torna-se possível perscrutar as perspectivas que se abrem para o restante de seu mandato.
A questão básica a examinar é a seguinte: o governo Lula tem sido capaz de promover as mudanças cujas bandeiras estiveram na origem de seu nascimento? E, mais concretamente, o governo Lula representa continuidade ou ruptura em relação ao período anterior, particularmente em relação à gestão Fernando Henrique, que exacerbou ao limite a subordinação externa da economia?
Adiantando um pouco a conclusão a que chegamos neste ensaio, é possível afirmar que é, contraditoriamente, continuidade e ruptura. Continuidade no que diz respeito à política econômico-financeira, especialmente nas áreas monetária, fiscal e cambial, e suas ações derivadas nas chamadas reformas microeconômicas; ruptura em relação à política exterior e suas ações derivadas na política de comércio exterior. Ao continuar os aspectos da política macroeconômica relativos às áreas monetária, cambial e fiscal, mantém a subordinação da economia ao FMI e às regras impostas pela administração estadunidense e os credores externos e internos; ao mudar a política exterior, afasta-se do alinhamento automático com aquela administração e pratica uma política externa independente e uma conseqüente política de diversificação do comércio exterior. É essa a contradição do governo Lula.
Setores da cúpula do PT costuma afirmar que o governo Lula realiza uma transição sem ruptura. Ora, se não há ruptura, não há transição, pois transição significa passagem de uma realidade para outra, e essa passagem implica romper com a realidade anterior. Se não se rompe com essa realidade, ou seja, se a essência dela se mantém, não se realiza transição alguma; ao contrário, pratica-se a continuidade. Embora em toda transição haja elementos de ruptura e de continuidade, a transição só se completa quando os elementos de ruptura passam a prevalecer. Na transição que realiza o governo Lula, há elementos de continuidade e de ruptura. Nem sempre é possível, num primeiro momento, decifrar quais elementos estão predominando. Este trabalho é um esforço nessa direção.

2. Herança maldita

Qualquer exame objetivo dessa primeira metade do mandato do Presidente Lula tem que partir da situação em que ele recebeu o País. E, nesse sentido, não é exagerado dizer que o governo de Fernando Henrique legou ao governo de Lula o que este designou de “herança maldita”. Examinemos, então, as principais características desse legado.
O grau de dependência externa aumentou expressivamente no período FH. Um dos melhores indicadores dessa dependência é o passivo externo, que computa o conjunto do capital estrangeiro presente no país, em suas várias modalidades de ingresso. O passivo externo líquido – que desconta o capital brasileiro presente no resto do mundo – subiu de US$ 149 bilhões em dezembro de 1994 para US$ 354 bilhões em dezembro de 2001(2). Enquanto isso, sua parcela representada pela dívida externa subia de US$ 148 bilhões em dezembro de 1994 para US$ 225 bilhões em dezembro de 2002. Em sua forma de “investimento direto” (que disfarça a aquisição de patrimônio nacional, em lugar de investimento em nova capacidade produtiva), a participação no faturamento das 500 maiores empresas privadas e 50 maiores estatais pulou de 32% em 1994 para 46,4% em 2001(3).
Segundo o Banco Central(4), de 1995 a 2000, 5.082 empresas brasileiras passaram para o controle estrangeiro. Assim, o número de empresas estrangeiras no país aumentou de 6.322 para 11.404 e seu patrimônio pulou no período de US$ 86,2 bilhões para US$ 179,8 bilhões. O resultado foi que setores-chave da nossa economia passaram a ser quase que inteiramente dominados pelo capital estrangeiro, conforme se pode ver pela tabela abaixo:

Tabela 1
Fatia do capital estrangeiro na economia brasileira – 2000

Setores % do faturamento
Eletroeletrônico 90
Automotivo 89
Higiene, limpeza e cosméticos 86
Tecnologia e computação 77
Telecomunicações 74
Farmacêutico 74
Mecânica 68
Alimentos 58
Plásticos e borracha 54

Fonte: “Melhores e maiores”, revista Exame, 2001

E a situação se agravou mais ainda posteriormente porque em 2001 e 2002 entraram mais US$ 40 bilhões do chamado “investimento direto estrangeiro” para se apropriar de empresas brasileiras(5). Ao final do governo Fernando Henrique, 76% do patrimônio público haviam passado para mãos privadas, a maioria para o capital estrangeiro: a participação do capital estrangeiro nas “privatizações” do período FH (1995/2002) foi de 53%, sem contar, evidentemente, o uso de testas-de-ferro e outras formas de disfarce do controle estrangeiro(6).
Uma outra importante forma de manifestar-se a dependência externa é a desnacionalização do mercado interno, que a Constituição de 88 havia estabelecido como patrimônio nacional. A partir de 1988/89, quando Mailson da Nóbrega esteve à frente do Ministério da Fazenda no governo Sarney, foi deflagrado um processo de abertura do mercado interno ao produto estrangeiro, que, melhor sistematizado no governo Collor, foi acelerado desde que Fernando Henrique assumiu o Ministério da Fazenda no governo Itamar. O principal instrumento utilizado foi a redução das tarifas de importação, mas a adoção do Plano Real acrescentou a sobrevalorização artificial da moeda nacional. Ora, a soma de tarifas baixas com moeda estrangeira barata foi fatal para a balança comercial brasileira e para as empresas instaladas no país: o importacionismo dali derivado só não produziu uma crise na proporção da que ocorreu na Argentina porque, pressionado por setores empresariais do País, o governo teve que corrigir tarifas de importação de importantes setores da economia (brinquedos, bens de capital, autopeças, calçados, veículos, etc.) e, diante da avassaladora crise cambial de 1998/99 (perdemos US$ 50 bilhões do nosso estoque de US$ 75 bilhões de reservas cambiais), foi forçado a desvalorizar o real no começo de 1999(7).
Ainda na área externa, o governo de Fernando Henrique deixara como legado uma política externa alinhada automaticamente com a política exterior dos EUA, um acordo para implantar a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) a partir de janeiro de 2005 e um “acordo” com o FMI para vigorar no primeiro ano do novo governo.
O endividamento público teve uma trajetória explosiva no governo tucano. Em seu conceito mais abrangente, de dívida líquida do setor público, subiu de R$ 153 bilhões (30,4% do PIB) em dezembro de 1994 para 881 bilhões (55,5% do PIB) em dezembro de 2002. A parcela que mais depende da política monetária do governo – e, por conseguinte, da taxa básica de juros -, a dívida mobiliária em poder do público, subiu de R$ 62 bilhões em dezembro de 1994 para R$ 623,2 bilhões em dezembro de 2002(8). Para fazer face aos encargos financeiros dessa trajetória explosiva do endividamento público, o governo aumentou violentamente a carga tributária total (três esferas da federação) do País, que subiu de 25,72% no ano anterior ao Plano Real (1993) para 35,53% em 2002 (ver tabela 2), além de haver torrado na bacia das almas, como vimos, quase todo o patrimônio público.

Tabela 2
Carga tributária como percentagem do PIB – 1993/2004

Ano Carga tributária (% do PIB)
1993 25,72
1994 29,47
1995 29,76
1996 28,97
1997 29,03
1998 29,73
1999 31,79
2000 32,49
2001 33,92
2002 35,53
2003 34,88
2004 35,45*

Fonte: Secretaria da Receita Federal, Ministério da Fazenda
* Essa foi uma estimativa preliminar divulgada pelo governo. Por sua vez, a entidade que congrega os fiscais da Fazenda, a Unafisco, estima uma carga de 36,06%; e o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), de 36,74%.
A economia estagnou durante o governo de Fernando Henrique: o PIB cresceu a um ritmo de apenas 2,3% ao ano(9) durante seus dois mandatos (1995/2002), mas, como a força de trabalho se expandia a 2,4% ao ano, o PIB por trabalhador (ocupado e desocupado) estacionou.
Como conseqüência, o desemprego explodiu: a taxa de desemprego da região metropolitana de São Paulo subiu de 14,2% em 1994 para 19% em 2002(10). O poder de compra do salário, depois de subir um pouco no primeiro ano e meio do Real em decorrência da queda da inflação, despencou daí em diante: o rendimento médio real dos trabalhadores ocupados na região metropolitana de São Paulo desabou 28,38% de 1995 a 2002, sendo que o rendimento dos assalariados caiu 21,58%(11). A nível nacional, só nos últimos cinco anos de governo FH, o salário médio real caiu 15%(12). Em decorrência desse arrocho salarial, a participação do conjunto dos salários (incluindo aí os encargos trabalhistas) na renda nacional, que já vinha caindo sistematicamente antes, baixou de 45% em 1993 para 36% em 2002(13).
Com desemprego nas nuvens e salário no fundo do poço, aumentou a quantidade de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza (com até meio salário mínimo): passou de 50 milhões em 1995 para 54 milhões em 2001, equivalentes a 32% da população(14).
Até mesmo na área onde seu governo propagava ter tido sucesso – o combate à inflação -, a ameaça de descontrole batia à porta em sua reta final. O Índice Geral de Preços da Fundação Getúlio Vargas, que, depois do pico de 1999 (20%), havia se mantido em torno de 10% no período 2000-01, voltou a disparar no último trimestre de 2002. A inflação média naquele trimestre, medida pelo IGP-DI, projetava uma taxa anual de 65%(15).
Lula, que se elegeu no segundo turno com 62% dos votos válidos(16), condensou em sua campanha eleitoral o profundo sentimento de mudança que havia tomado conta do povo brasileiro. Ele próprio revelou essa consciência já na abertura de seu discurso de posse, a 1º de janeiro de 2003: “’Mudança’: esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro. A esperança finalmente venceu o medo (…) Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República: para mudar”. E definiu claramente o sentido da mudança: “O Brasil, nesta nova empreitada histórica, social, cultural e econômica, terá de contar sobretudo consigo mesmo, terá de pensar com a sua cabeça, andar com as suas próprias pernas, ouvir o que diz o seu coração”. Apesar de terem se apresentado outros candidatos com discurso de oposição, o povo havia identificado, não necessariamente o PT, mas sobretudo Lula como o portador dessa mudança. Isso porque, ao contrário dos demais, sua trajetória política o credenciava como oposição mais consistente ao “modelo econômico” e às políticas econômicas vigentes.

3. Política externa independente

Hoje, num balanço dos dois primeiros anos de governo Lula, é possível afirmar que ele respondeu de maneira contraditória ao anseio de mudança depositado nas urnas de 2002.
De um lado, no front externo, rompeu com a política de alinhamento automático com os EUA que vinha sendo praticada pelo governo FH e retomou a tradição de política externa independente de Santiago Dantas. E, nesse sentido, tem se chocado, em muitos aspectos e momentos, com os interesses expansionistas levados ao extremo pela administração Bush. Na esfera econômica – com impacto mais diretamente na política de comércio exterior -, pode-se falar em quatro ações importantes que expressam esse choque com os interesses estadunidenses:
1) por ocasião da reunião da OMC em Cancún, México, quando a diplomacia brasileira liderou um grupo de 22 países contra a tentativa dos representantes dos EUA imporem sua agenda unilateral nas negociações;
2) nas duas reuniões para discutir a formação da ALCA, em Miami (EUA) e Puebla (México), quando a posição brasileira de resistência às imposições dos representantes do governo estadunidense inviabilizou o avanço das negociações e, em conseqüência, adiou sine die a implementação do bloco regional, que estava prevista para iniciar-se a 1º de janeiro de 2005;
3) a constituição, em dezembro de 2004, da Comunidade Sul-Americana de Nações, que, com a fusão do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações (Pacto Andino), começou a construir um bloco regional que, ao unir o conjunto da América do Sul, se contrapõe aos objetivos estadunidenses de formação da ALCA para garantir seu domínio absoluto na região;
4) a abertura de um processo de aproximação com os países da África, do mundo árabe, da China, Rússia e Índia, além de outros países em desenvolvimento, com o objetivo explícito de diversificar nossas relações comerciais externas e que, além do mais, tende a fortalecer um pólo que pode se contrapor ao unilateralismo belicista que vem praticando o governo dos EUA na sua política externa.

Ao mesmo tempo, na área mais propriamente política, o governo Lula adotou um conjunto de atitudes na sua política exterior cuja contradição com a política exterior do governo Bush é evidente, a saber:

1) a articulação para democratizar o Conselho de Segurança da ONU, dando-lhe mais representatividade mediante a incorporação de novos membros permanentes, dentre eles o Brasil, diminuindo, assim, a capacidade de o governo dos EUA impor suas decisões;

2) a oposição à invasão do Iraque pelos EUA, quando defendeu uma posição de negociação através da ONU;
3) no caso da Venezuela, em que tem apoiado o governo bolivariano de Hugo Chávez contra as tentativas de desestabilização patrocinada pelo governo dos EUA;

4) em relação à Bolívia, quando apoiou uma solução negociada que garantiu a substituição do neoliberal de sotaque estadunidense Sanchez de Lozada por seu vice, Carlos Mesa, contra a posição do governo dos Estados Unidos, que defendia sua permanência.

Na área interna, também ocorreram mudanças importantes, com destaque para as seguintes:

1) o BNDES deixou de financiar a aquisição de empresas estatais pelo capital estrangeiro para financiar o investimento das empresas nacionais; além disso, recomprou parte das ações da CVRD(17) (garantindo o controle acionário por sócios nacionais) e assumiu metade (menos uma ação) do valor das ações da energética paulista Eletropaulo, que havia sido arrematada, com dinheiro emprestado pelo próprio BNDES, pela estadunidense AES, a qual deu calote no banco(18);

2) o Ministério das Minas e Energia recuperou parte de seu poder de comando no setor energético, antes entregue às agências reguladoras, além de suspender o processo de “privatização” do setor;

3) a Petrobras estabeleceu um programa de compra de plataformas e navios construídos no País (num total de 40), com o objetivo de estimular a produção nacional, em lugar da anterior política importadora; decidiu também voltar a operar no setor petroquímico, que fora totalmente privatizado(19).

4. Manutenção da política econômica do FMI

No entanto, tem prevalecido na esfera interna a manutenção das políticas monetária, cambial e fiscal – componentes decisivos da política macroeconômica – que vinham sendo praticadas pelo governo FH, além de dar-se continuidade às “reformas microeconômicas” por ele programadas. O Ministério da Fazenda e o Banco Central mantiveram e renovaram o “acordo” firmado com o FMI, preservando, em conseqüência, a subordinação ao seu receituário econômico(20). Nesse terreno, o governo, em lugar de enfrentar a “herança maldita”, optou por subordinar-se a ela e, dentro dela, procurar fazer alguma coisa, como veremos, para amenizar seus perversos efeitos econômicos e sociais – as chamadas “medidas compensatórias”. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, tem alegado que esse é o único caminho possível. Mas não foi sem importantes embates dentro do próprio governo que esse caminho terminou por se impor nestes dois primeiros anos de mandato. O próprio chefe da Casa Civil, José Dirceu, tido como a pessoa com maior poder dentro do governo depois do Presidente, tem resistido a essa política.
Além de herdar o “acordo” com o FMI, o governo Lula recebeu como herança uma política de combate à inflação baseada no “sistema de metas de inflação”. Depois do enterro, em janeiro de 1999, da “âncora cambial”, que era o principal instrumento de combate à inflação durante o Plano Real, o então presidente do Banco Central, Armínio Fraga, importou, para substituí-la, o chamado sistema de metas de inflação, inteiramente enquadrado no receituário do FMI, porque, como veremos, está dentro da mais perfeita ortodoxia monetarista. Por esse sistema, a meta inflacionária é estabelecida pelo governo – no caso do Brasil, formalmente pelo Conselho Monetário Nacional, mas, na prática, vem sendo imposta nos “acordos” com o FMI – e depois cabe ao Banco Central, através do Comitê de Política Monetária (COPOM), garantir a convergência da inflação efetiva (ou da que consta das expectativas dos operadores do sistema financeiro) para a meta inflacionária. Como, em sua lógica monetarista, a inflação é gerada por excesso de moeda em circulação, a “âncora monetária”, isto é, a taxa básica de juros, substitui a “âncora cambial” como principal instrumento de combate à inflação. Assim, o Banco Central montou um “modelo” que correlaciona taxa de juros e taxa de inflação, de modo que, quanto mais as expectativas inflacionárias ou a inflação efetiva se afastam da meta de inflação, maior é a taxa de juros praticada pelo Banco Central, como forma de tirar moeda de circulação. Nessa lógica, enquanto as metas inflacionárias forem decrescentes, a inflação corrente e, em conseqüência, as expectativas inflacionárias sempre serão maiores do que a meta estabelecida e, neste caso, os juros teriam que se manter sempre elevados ou mesmo em elevação. Em nosso caso, a diretoria do Banco Central, que constitui o Comitê de Política Monetária (COPOM), se reúne todo mês para estabelecer a taxa básica de juros (selic)(21). E, em seu “diagnóstico”, usa como uma de suas principais peças a “pesquisa Focus”, que é um levantamento de expectativas inflacionárias e expectativa de juros futuros feito pelo BC junto a cerca de 100 operadores e analistas do sistema financeiro. Ou seja, os agentes financeiros, que são os principais beneficiários de políticas de juros altos, servem de fonte para as autoridades do BC acerca das expectativas de juros futuros. Por essa via, também os juros tendem a se manter elevados. É o mesmo que colocar a raposa para tomar conta do galinheiro.
Dentro dessa visão, uma política monetária restritiva, fundamentada em juros altos, além de instrumento de combate à inflação, presta-se ainda a um outro objetivo: na época do governo Fernando Henrique, como havia déficit nas contas correntes do balanço de pagamentos, os juros elevados tinham o objetivo de atrair capitais externos (obviamente, especulativos) para cobrir esse rombo nas contas externas, mas, na gestão Lula, quando esses déficits, por força do crescimento dos saldos positivos da balança comercial, se converteram em superávits, racionaliza-se que os juros altos cumprem o papel de manter no país os capitais especulativos (externos ou internos), viabilizando, assim, a “rolagem” da dívida pública. Temem que uma eventual redução dos juros poderia espantar esses capitais, inviabilizando o refinanciamento da dívida pública e provocando, ao mesmo tempo, uma forte fuga de capitais e, portanto, uma forte valorização da moeda estrangeira.
Dentro do receituário do FMI, um outro instrumento de combate à inflação é a chamada “âncora fiscal”, que, no passado, se manifestava sobretudo na contenção do gasto público, mas, hoje, se expressa na geração de superávits primários das contas públicas, obtida tanto pelo corte do gasto público como pela elevação da carga tributária. Com isso, tentam matar dois coelhos de uma cajadada só: retiram dinheiro de circulação e assim atendem à lógica de sua política monetarista de combate à inflação e, ao mesmo tempo, geram recursos para pagar os encargos financeiros da dívida. Alegam que, dessa forma, os aplicadores em títulos públicos mantêm seu dinheiro no País e garantem o refinanciamento da dívida. Nesse caso, quanto maior a relação dívida/PIB e maiores as taxas de juros, maiores deveriam ser os superávits primários como proporção do PIB. Ou seja, arrocho monetário demanda arrocho fiscal.

5. Dogmatismo monetarista impera na política econômica

O Ministério da Fazenda e o Banco Central vêm, desde o começo do governo Lula, seguindo à risca esse figurino. E têm sido mais ortodoxos do que a tradicional ortodoxia monetarista à Friedman: naquela visão, quando a inflação estava em queda, os juros poderiam baixar; na visão que vem sendo praticada pelo Banco Central, mesmo que a inflação esteja em queda, mas sua taxa efetiva – ou a “expectativa” de sua taxa futura – supere a meta estabelecida, os juros seguem elevados ou mesmo em elevação. É isso que vem ocorrendo. A taxa inflacionária, medida pelo IPC do IBGE – que é o índice adotada pelo BC -, fechou 2002 em 12,58%, 2003 em 9,33% e 2004 em 7,57%(22). Mas, como a meta para 2004 era de 5,5% e para 2005 é de 4,5% (depois ajustada para 5,1%), o BC, mesmo tendo “acordado” com o FMI uma margem de 2,5 pontos percentuais, prefere “mirar” o núcleo da meta e por isso segue mantendo os juros básicos reais (que é o que interessa para quem toma e dá dinheiro emprestado) elevados ou mesmo em elevação. Na tabela abaixo, percebe-se que o governo Lula herdou uma taxa de juros reais muito baixa (5,8% anuais em dezembro de 2002), não porque a taxa nominal também o fosse, mas porque a inflação havia recrudescido no final do governo de FH; a aceleração inflacionária manteve essa tendência de baixa da taxa real de juros até março de 2003 (3,6%), a partir de quando esta começou a subir de maneira sistemática até atingir 14,3% em abril de 2004; um ligeiro aumento da inflação voltou a diminuir os juros reais até alcançar a taxa de 9,3% em setembro, a partir de quando o COPOM voltou a subir a taxa selic, forçando, assim, a taxa real novamente para cima até atingir 12,7% em março de 2005(23).

Tabela 3
Taxas de juros reais efetivas* (%) – últimos 12 meses
Mês Jan/02 Fev/02 Mar/02 Abr/02 Mai/02 Jun/02 Jul/02 Ago/02
Taxa 9,3 9,6 9,5 9,6 9,9 10,1 10,3 10,1
Mês Set/02 Out/02 Nov/02 Dez/02 Jan/03 Fev/03 Mar/03 Abr/03
Taxa 9,7 9,3 7,0 5,8 4,5 3,9 3,6 3,8
Mês Mai/03 Jun/03 Jul/03 Ago/03 Set/03 Out/03 Nov/03 Dez/03
Taxa 4,0 5,1 6,8 7,4 7,6 8,7 11,4 12,9
Mês Jan/04 Fev/04 Mar/04 Abr/04 Mai/04 Jun/04 Jul/04 Ago/04
Taxa 13,7 13,9 14,2 14,3 13,5 11,9 10,2 9,3

*Adotada como base a taxa do CDI (Certificado de Depósito Interbancário), que reflete a evolução da selic, deflacionada pelo IPCA do IBGE.
Fonte: Bacen e IBGE. Elaboração: Global Invest. Relatório Mensal – taxas de juros, dez. 2002, dez. 2003 e set. 2004.

Em suma, havia espaço, mesmo dentro da lógica de que juros altos pudessem servir para combater a inflação e obedecendo à lógica atual do próprio FMI – que, apesar de extremamente rígida, concorda com uma margem de “tolerância” -, para o BC baixar os juros, mas suas autoridades optaram por não fazê-lo. Racionalizam, para justificar esse comportamento, que taxas de crescimento do PIB acima de 3,5% ao ano provocam inflação e impedem a sustentabilidade do crescimento(24). Por isso, os juros têm que ser elevados para “enquadrar” o crescimento nesse “teto” por eles fantasiosamente estabelecido. De onde eles tiraram esse número cabalístico, ninguém sabe, a não ser que se trata de mais uma cópia da equipe econômica de Fernando Henrique..
Os próprios monetaristas, que formularam a “teoria” de que juros altos coíbem um processo inflacionário, professam que isso ocorre porque, ao enxugarem o mercado de moedas, contêm a demanda, retirando sua pressão sobre os preços. Ou seja, nessa visão, os juros só resolveriam tensões inflacionárias provocadas por excesso de demanda ou, ainda, só poderiam combater “inflações de demanda”. Ora, a inflação herdada pelo governo Lula, como vimos antes, não era uma “inflação de demanda”. Como poderia sê-lo se a economia estava há dois anos (2001 e 2002) estagnada, patinando a 1,6% ao ano, em média? A aceleração inflacionária no segundo semestre de 2002 se deveu, sobretudo, à valorização do dólar (e conseqüente desvalorização do real), que chegou em outubro daquele ano a R$ 4,00. Assim, os produtos importados encareceram em real; além disso, os produtores de bens exportados, que passaram a receber melhor preço em real, passaram a cobrar preço idêntico no mercado interno. Com isso, os preços no atacado dispararam, forçando o Índice Geral de Preços da FGV para cima: a inflação anual, projetada com base no IGP-DI do último trimestre de 2002, indicou um índice de 65%. E, como, por força dos contratos firmados por FH, os setores de serviços privatizados deveriam ter suas tarifas reajustadas com base no IGP, os preços administrados seguiram na esteira dos preços no atacado, isto é, refletiram a desvalorização do real. Mesmo depois da queda do dólar, os efeitos retardados da valorização anterior seguiram contaminando o IGP e, por conseguinte, os preços administrados. Estes, além disso, receberam o impacto do aumento dos preços das commodities no mercado internacional em 2003 e 2004. Assim, se formos desmembrar o IGP em seus vários componentes, vamos verificar que nestes dois últimos anos os preços administrados subiram na frente dos demais preços(25). Em síntese, como a subida do dólar, que estava na origem da aceleração inflacionária deflagrada em 2002, desapareceu e converteu-se em seu contrário – em queda do valor dessa moeda -, restou como pressão sobre os preços o reajuste dos preços administrados. Nada a ver com “inflação de demanda”. De que adianta cortar a demanda se os preços administrados, que não dependem dela, mas da política de reajuste tarifário pactuada, seguem sendo reajustados? Essa correção monetária automática, que afeta a mais de um terço dos preços ao consumidor, está hoje em torno de 12% ao ano. Para resolver o problema, bastaria extirpar esse mecanismo de indexação – preços administrados atrelados ao IGP – que, além de realimentar a inflação, só beneficia aos proprietários das empresas privatizadas, que são basicamente grupos estrangeiros.
Por outro lado, a história já revelou que uma política monetária restritiva não é capaz de debelar um processo inflacionário de maneira sustentada. Numa economia muito cartelizada, como é o caso da brasileira(26), o corte da demanda provocado por juros altos não necessariamente força a queda dos preços ou mesmo da taxa inflacionária. Usando seu poder de monopólio, os cartéis podem até promover reajuste de preços como forma de compensar a queda das vendas e assim garantir sua expectativa de rentabilidade. Só uma queda muito profunda da demanda e, portanto, uma recessão muito violenta podem forçar as empresas monopolistas a conter sua sanha remarcadora. Ou quando, mesmo a recessão não sendo muito forte, um processo de estagnação econômica se faz acompanhar de abertura da economia para produtos estrangeiros. Foi o que ocorreu no período de Fernando Henrique e nestes dois primeiros anos de governo Lula. Mas as conseqüências já conhecemos: além da pressão que o importacionismo realiza sobre as contas externas, a economia é impedida de crescer. Quando a inflação é combatida dessa forma, a pressão sobre os preços retorna tão logo a economia volte a crescer, na medida em que esse fato permite aos cartéis o retorno ao reajuste de preços. Assim, essa forma de combate à inflação, ao ser incompatível com o crescimento econômico, não se sustenta no tempo. Além do mais, a elevação dos juros, ao provocar o aumento dos encargos financeiros das empresas endividadas, estimula estas a repassar esses custos para os preços tão logo tenham condição de fazê-lo, pressionando a inflação para cima. Igualmente, como veremos mais adiante, força o governo a aumentar a carga tributária, pressionando, por essa via, a estrutura de custos das empresas. Isso, sem falar no fato de que, ao desorganizar as finanças públicas, alimenta expectativas inflacionárias nos chamados agentes econômicos. Por isso, juros altos também são incompatíveis com estabilidade monetária duradoura.
Vejamos o outro argumento, o de que juros elevados são necessários para impedir fuga de capitais e garantir o refinanciamento da dívida pública. Ora, o que vem ocorrendo na economia mundial é, além do excesso de liquidez financeira, um nível muito baixo de taxas reais de juros(27). Na verdade, são duas faces da mesma moeda: excesso de liquidez financeira provoca juros baixos. Excesso de dinheiro torna mais fácil sua captação pelos tomadores. Então, por que o Brasil tem que disputar o campeonato de taxas de juros reais no mundo? E mais ainda, com uma diferença muito grande em relação aos demais países? Segundo levantamento da Global Invest, a taxa real efetiva dos juros básicos praticada no Brasil nos 12 meses terminados em dezembro de 2003 era de 12,8%, enquanto a taxa real média dos chamados países emergentes – que, portanto, em tese, disputariam com o Brasil recursos internacionais – era de 3,6% e a dos países desenvolvidos, 0,5%. Naquele ano, apenas a Turquia ganhava do Brasil: 15,9%. No levantamento referente a setembro de 2004, mês em que as taxas de juros voltaram a subir no Brasil, a disparidade permanecia, como se pode observar na tabela 4.

Tabela 4
Taxas básicas de juros reais

Países  %
Turquia  14,8
Brasil  9,3
“Países emergentes”  2,7
Países ricos  0,3

Fonte: Global Invest. Relatório mensal – taxas de juros. Set. 2004

Mas, no levantamento de março de 2005, depois que o COPOM promoveu a disparada dos juros, o Brasil não apenas assumiu a dianteira, como se distanciou do segundo colocado: a taxa real do Brasil subiu para 12,3%(28), enquanto a da Turquia baixou para 6,7%; a taxa média dos 40 países estudados estava no rés do chão: 1,2%(29). Se considerarmos os países centrais, as taxas reais de juros são negativas, isto é, as taxas básicas são menores do que a inflação, à exceção da Inglaterra, como mostra a tabela abaixo:

Tabela 5
Países centrais: taxas básicas de juros e taxas de inflação anuais – 2004

Países Taxa de juros (%) Taxa de inflação (%)
EUA 2,5 3,3
Japão 0,02 0,8
Zona do euro 2,14 2,3
Inglaterra 4,81 1,6

Fonte: Folha de S.Paulo, 30.01.2005

Portanto, a não ser que os especuladores prefiram ganhar menos, não há nada que ameace o refinanciamento da dívida pública brasileira (a dívida externa não depende dos juros internos, mas das taxas internacionais e do “risco” que os especuladores atribuem a cada país).
Além disso, os critérios para compor a taxa de juros exigida pelos especuladores internacionais para se arriscarem a aplicar seu dinheiro num país seriam plenamente satisfeitos com uma taxa de juros muito mais baixa do que a que vem sendo praticada no Brasil. Eles somam a taxa básica dos EUA com o que eles chamam “risco país” (que eles mesmos “calculam”) e mais a correção cambial. Façamos os cálculos: taxa básica dos EUA – 2,5%; “risco Brasil” – 4%; a correção cambial vem sendo negativa, já que o dólar vem se desvalorizando, mas demos uma colher de chá e deixemos de subtrair essa correção negativa(30). Resultado: 6,5%. Vejam bem, os próprios especuladores “sinalizam” que topariam aplicar no Brasil a uma taxa de 6,5% nominais, mas o Banco Central vem praticando uma taxa real que é o dobro disso. Sabemos perfeitamente que, como se acostumaram a usufruir de uma taxa de juros elevada aqui no Brasil, sua tendência, diante de um movimento de queda, é chantagear (ameaçar retirar o dinheiro do País) para impedir esse movimento. E, para isso, recorrem, não a uma ilusória “lei de mercado”, mas ao poder de monopólio de que desfrutam na esfera mundial(31). Mas esse poder tem limites: como não vão encontrar campos mais rentáveis e seguros para aplicar os recursos daqueles que aplicam em seus “fundos de investimento”, a quem devem satisfação, essa chantagem tem pernas curtas. De qualquer forma, agindo com firmeza, há um espaço razoável para baixar os juros no Brasil.
Mas há uma contradição nessa ânsia de ganho dos especuladores e nessa ânsia das autoridades monetárias em servi-los. É evidente que a banca, estrangeira ou nacional, prefere juros altos. No entanto, se eles permanecerem durante muito tempo em patamares elevados, os donos do dinheiro começam a desconfiar da capacidade de pagamento do governo e, aí sim, podem passar a retirar seus capitais, realizando a tão temida – pelos dirigentes do BC – fuga de capitais. Até o atual ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, que tem estado afinado com a política econômica de Palocci/Meirelles, percebeu essa verdade, conforme declarou recentemente em entrevista: “para qualquer pessoa que analise o impacto dos juros sobre o estoque da dívida pública, nós temos de questionar se uma política monetária tão rígida não pode acabar causando o efeito contrário daquilo que se pretende. Pode causar maior preocupação com a sustentabilidade da dívida, aumentando, portanto, as avaliações de risco e, simultaneamente, causando no mercado financeiro expectativas negativas em relação à dívida brasileira”. Mais: “Se houver o prosseguimento de juros altos e real apreciado por um longo prazo, evidentemente vamos ter uma mudança das expectativas econômicas”(32).

6. Palocci paga mais a bancos do que exigido pelo FMI

Vimos, assim, que o núcleo central dessa “política de estabilização” patrocinada pelo FMI é o que eles chamam de “austeridade monetária”: a política de juros altos é racionalizada como instrumento de combate à inflação e de garantia de refinanciamento da dívida pública. Mas, como vimos, um outro instrumento adotado, que decorre diretamente do primeiro, é o que eles designam de “austeridade fiscal”, que operaria como “âncora fiscal” da “política de estabilização”. A principal forma como isso se manifesta é o superávit primário, isto é, a geração de recursos públicos para servir aos encargos financeiros engendrados pelos juros altos. No governo Lula, o superávit primário foi sensivelmente elevado: esteve em torno de zero durante o primeiro mandato do governo FH, passou para 3% do PIB no segundo mandato (havendo sido de 3,89%(33) no último ano, equivalentes a R$ 52,39 bilhões), subiu para 4,37% no primeiro ano do governo Lula (R$ 66,17 bilhões) e chegou a 4,61% no segundo ano (R$ 80,1 bilhões)(34). É importante registrar que a meta estabelecida no “acordo” com o FMI para estes dois anos era de 4,25% do PIB. Além disso, não foi o FMI que exigiu esses 4,25%; ele estava satisfeito com os 3,89% realizados pelo governo de Fernando Henrique no último ano. Foi o Ministério da Fazenda da gestão Palocci que propôs a elevação dos saldos primários das contas públicas, isto é, esse aumento dos pagamentos dos encargos financeiros da dívida; não bastasse isso, deu de bandeja um superávit maior do que o prometido.
Essa decisão se fundamentou em documento editado pelo Ministério, da lavra do economista Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica, em que este, depois de criticar o governo de Fernando Henrique por haver gerado um baixo nível de superávit primário, afirma que a geração de elevados saldos nas contas públicas era o caminho para baixar a relação dívida/PIB e, assim, criar as condições para posteriormente baixar a taxa de juros. Nessa visão, enquanto a relação dívida/PIB não baixa, os juros têm que permanecer elevados. Diz o documento que, se FH houvesse, durante seus oito anos de mandato, gerado um superávit médio anual de 3,5% do PIB, a relação dívida/PIB seria a metade dos 55,5% legados a Lula, e os juros seriam menores(35). Isso seria possível porque, além da contenção da demanda e, portanto, da inflação possibilitada pela geração de saldos primários, o fato de contar com essa garantia de remuneração de suas aplicações daria mais segurança aos “investidores”(36), que por isso mesmo poderiam aceitar juros menores. Referido documento(37) tem como base estudo feito antes das eleições por uma equipe integrada, dentre outros, pelo próprio Lisboa, sob encomenda do Banco Mundial. Coincidentemente, estudo solicitado na mesma época pelo BIRD a economistas estadunidenses do MIT (Massachusset Institute of Technology) havia chegado à mesma conclusão.
Para obter esses crescentes saldos primários, a ação da área econômica no primeiro ano, como houve queda da carga tributária(38), consistiu em cortar severamente os investimentos públicos(39), mas o principal instrumento no segundo ano foi o aumento da carga tributária: segundo a Secretaria da Receita Federal, a carga aumentou de 34,88% em 2003 para 35,45% no segundo(40). Por qualquer dos dois caminhos – contenção de investimento ou aumento da tributação -, o resultado sobre a economia é o mesmo: ao retirar dinheiro dos que produzem ou trabalham para canalizar para o sistema financeiro, provoca-se a retração do consumo e da produção e, em decorrência, a desaceleração da economia.
Enquanto isso, o que ocorreu com a dívida pública? Pelo conceito mais amplo, o de “dívida líquida do setor público”(41), a evolução foi a seguinte:

Tabela 6
Evolução recente da dívida líquida do setor público

Períodos de tempo Valor (R$ bilhões)
Dezembro de 2002 881,1
Dezembro de 2003 913,15
Dezembro de 2004 957

Fonte: Banco Central do Brasil

Se considerarmos a dívida mobiliária, cuja trajetória é mais explosiva, na medida em que depende mais diretamente da taxa selic, a evolução foi a seguinte (tabela 7):

Tabela 7
Evolução recente da dívida mobiliária federal

Períodos de tempo Valor (R$ bilhões)
Dezembro de 2002 623,2
Dezembro de 2003 732
Dezembro de 2004 812

Fonte: Banco Central do Brasil

Ou seja, em dois anos, a dívida total cresceu R$ 76 bilhões e a sua parcela mobiliária, R$ 188,8 bilhões, isto é, um brutal crescimento de 30,3% em apenas dois anos. A dívida total, apesar de forte crescimento, cresceu menos do que a mobiliária porque, como veremos a frente, realizaram-se no período pagamentos do principal da dívida pública externa. Em síntese, impôs-se um enorme sacrifício fiscal no período, ao gerar um superávit primário de R$ 146,27 bilhões, inteiramente usado para pagar encargos financeiros da dívida, sem contar os pagamentos de dívida pública externa, e ainda assim a dívida pública total subiu R$ 76 bilhões.
Os próceres do Ministério da Fazenda podem se vangloriar de que, apesar do crescimento absoluto da dívida pública, a relação dívida/PIB diminuiu: de 55,5% em dezembro de 2002 para 51,3% em dezembro de 2004(42). Isso é verdade, mas esse resultado deve ser matizado: 1) num primeiro momento, essa relação aumentou, pois passou de 55,5% em dezembro de 2002 para 58,2% em dezembro de 2003 – isso se deveu basicamente à estagnação do PIB num momento em que a dívida estava crescendo fortemente(43); 2) num segundo momento, o índice baixou, passando de 58,2% em dezembro de 2003 para 51,3% em dezembro de 2004 – isso se deveu não à desaceleração do crescimento da dívida(44), mas ao crescimento do PIB. Significa que, diante de uma eventual desaceleração do PIB, a continuar a política de juros altos, a relação dívida/PIB voltará a crescer, apesar dos gigantescos superávites primários que estão sendo gerados. O nó górdio do problema é, pois, a taxa de juros. Se ela houvesse baixado, a relação dívida/PIB haveria caído mais ainda, e, o que é melhor, de forma sustentada.

7. Volta fantasma do real sobrevalorizado

Uma importante decorrência da política de juros e superávits primários elevados vem sendo o retorno do fantasma, já tão nosso conhecido, da sobrevalorização externa da nossa moeda. Lembremo-nos de que a sua valorização durante o primeiro mandato de FH levara à explosão das contas externas e internas, ao sucateamento de parcela importante da nossa indústria, ao estancamento da economia, ao aumento do desemprego, enfim, ao colapso financeiro do país, forçando o governo a, no apogeu da crise, em janeiro de 1999, desvalorizar o real. Pois bem, em termos reais, isto é, descontada a inflação do Brasil e dos seus principais parceiros comerciais, estamos hoje com o real mais valorizado do que estava na véspera do colapso de janeiro de 1999(45). Nestes últimos dois anos, o dólar caiu, em termos reais, 34,5% em relação ao real(46).
Essa revalorização do real não se deve apenas aos juros elevados, mas, como veremos, eles vêm tendo um papel decisivo. Os neoliberais de plantão alegam que o valor das moedas é estabelecido pelo mercado, desde que se as deixem flutuar. Por outro lado, as autoridades econômicas brasileiras procuram nos convencer – e convencer a si mesmas – de que não se pode fazer muita coisa porque essa queda do dólar faz parte de um movimento mais geral, já que essa moeda tem caído diante de todas as principais moedas do mundo. De fato, esse movimento existe, e se explica sobretudo pelo crescimento dos chamados déficits gêmeos dos EUA (combinação do déficit público com o déficit externo)(47), o que exige a demanda de recursos externos (da Europa, do Japão, da China e dos “tigres asiáticos”) para financiá-los. Essa maior demanda de moeda estrangeira pelos EUA força o enfraquecimento da moeda estadunidense. Essa é apenas parte da verdade, já que a valorização do real diante do dólar é maior do que a de outras moedas. Assim, como vimos anteriormente, o real está se valorizando não apenas em relação ao dólar, mas a uma cesta de moedas dos 13 principais países com os quais o Brasil comercializa, em relação às quais se valorizou 12,6% somente em 2004; além disso, segundo estudo da FIESP, o real foi a segunda moeda que mais se valorizou em relação ao dólar de maio de 2004 a janeiro de 2005: acumulou valorização de 16,4%, atrás apenas da Polônia, cuja moeda valorizou-se 18,4% – nesse estudo, caso o nível de valorização do real fosse dentro da média dos demais países, a cotação do dólar no começo de fevereiro seria de R$ 2,86, e não de R$ 2,60, como estava(48).
Então, existem razões relacionadas ao Brasil que provocam esse movimento. Certamente, os enormes superávits comerciais obtidos nestes últimos dois anos – acumulando um total de US$ 58,5 bilhões – e a entrada de recursos sob a forma de “investimento direto estrangeiro” – em torno de US$ 27 bilhões – ajudam a explicá-lo. Por duas razões: de um lado, porque produzem o aumento da oferta de dólar no mercado interno e, de outro, porque garantem aos que trazem seus dólares para aplicar no Brasil que, assim que quiserem retornar à esfera internacional ou à sua origem, poderão contar com dólares suficientes para fazer o câmbio. No entanto, um fato decisivo para a vinda dos capitais estrangeiros é a combinação de juros elevados com superávits primários também elevados. Assim, os especuladores contam que, além dos elevados ganhos para suas aplicações em títulos do governo, podem receber parte significativa desses ganhos e, além disso, convertê-los em dólares quando quiserem retornar à esfera internacional. Fica claro que o movimento da taxa de câmbio não tem nada a ver com “forças de mercado”. Sua queda recente resulta de uma política deliberada do governo, que, ao praticar juros e superávits primários elevados, atrai capitais especulativos externos na forma de dólares, provocando seu enfraquecimento. Veja na tabela abaixo a sincronia entre a elevação da taxa selic e a queda da taxa de câmbio desde que começou o movimento recente de subida dos juros (setembro 2004).

Tabela 8
Comportamento da Selic e da taxa de câmbio – set.2004/fev.2005

Data definição Selic 01/09/04 15/09/04 20/10/04 17/11/04 15/12/04 19/01/05 16/02/05
Taxa Câmbio (R$/US$) 2,933 2,902 2,872 2,762 2,725 2,711 2,563
Taxa Selic(%) 16,00 16,25 16,75 17,25 17,75 18,25 18.75

Fonte: Banco Central do Brasil

A área econômica do governo tem utilizado o dólar barato – ou, o que dá no mesmo, a sobrevalorização do real – como instrumento de combate à inflação, fazendo renascer a chamada “âncora cambial”, pois com dólar barato os produtos importados também ficam baratos, pressionando a estrutura de preços internos para baixo. Essa atitude pode não ser inteiramente consciente, mas há algo de consciente nela, pois o FMI, que funciona como “consciência” da área econômica do governo, revelou estar apostando no uso desse instrumento de combate à inflação: em seu relatório anual sobre o Brasil, divulgado em 25 de março de 2005, afirma, entre outras coisas, que “a recente valorização do real e o aumento das taxas de juros” devem ajudar a derrubar a inflação nos próximos meses(49).
No entanto, com a “âncora cambial”, podem retornar os problemas já nossos conhecidos: em primeiro lugar, na balança comercial, com o aumento desordenado das importações e a limitação ao crescimento das exportações, podendo trazer de volta os déficits comerciais, com seu conseqüente impacto no aumento da vulnerabilidade externa; em segundo, nas finanças públicas, pois a elevação dos juros para atrair capitais externos destinados a cobrir eventuais rombos na balança comercial provoca o aumento dos encargos financeiros da dívida pública; terceiro, na estrutura produtiva interna, ao substituir produção interna por produção importada e prejudicar os setores exportadores; em quarto lugar, no nível de emprego, que seria afetado pela queda ou estancamento da atividade econômica.
Até agora, apenas as importações foram afetadas: em 2003, devido à estagnação da economia, elas praticamente estacionaram – cresceram apenas 2,22%, passando de US$ 47,24 bilhões para US$ 48,29 bilhões -, mas em 2004, quando a economia começou a reagir, subiram 30%, retomando o recorde de US$ 62,78 bilhões alcançado em 1997 por conta da sobrevalorização do real(50). As exportações ainda não sofreram o impacto do real valorizado: cresceram 21% de 2002 para 2003 (passando de US$ 60,36 bilhões para US$ 73,08 bilhões) e espetaculares 32% em 2004 (subindo para US$ 96,48 bilhões)(51). E isso tem levado aos arautos do real valorizado a profetizar que, desta vez, não haverá problema com as exportações. Não percebem que os efeitos do real valorizado sobre as exportações, de um lado, se manifestam retardatariamente(52) e, por outro, estão sendo por enquanto compensados por fatores, que, como veremos adiante, têm seus limites. Referimo-nos basicamente à política de diversificação comercial adotada pelo governo Lula, combinada com o fato de que essa diversificação tem procurado mercados cujas moedas também se valorizaram em relação ao dólar, ainda que não na mesma proporção da moeda brasileira, sem contar com o forte crescimento (para os padrões recentes) da economia mundial nos últimos dois anos.
Um outro instrumento que, uma vez mais, consciente ou inconscientemente, foi usado no combate à inflação foi o velho e famigerado arrocho salarial. A “âncora salarial” somou-se, portanto, à “âncora monetária”, à “âncora fiscal” e à “âncora cambial” para compor o arsenal de combate à inflação empregado pela atual equipe econômica, dentro da mais estrita ortodoxia monetarista que vem sendo imposta pelo FMI há décadas (a única aquisição nova, que vem sendo praticada desde os anos 90, é a “âncora cambial”) . De acordo com o IBGE, o poder de compra do rendimento do trabalho nas principais regiões metropolitanas do país caiu 12,92% entre os últimos 10 meses de 2002 e igual período de 2003(53); por sua vez, pesquisa do SEADE/DIEESE revelou uma queda menor na região metropolitana de São Paulo – 6,33%(54) -, provavelmente em face do maior poder de organização e de mobilização dos trabalhadores dessa região. Em 2004, a nível nacional, a queda reduziu-se substancialmente: foi de apenas 0,8%; em São Paulo, houve um ligeiro aumento de 1,5%. A violenta queda do salário real em 2003 deveu-se principalmente à estagnação da economia e ao conseqüente aumento do desemprego, provocados sobretudo pela rígida política monetária e fiscal, isto é, pelos juros e superávits primários nas nuvens; do mesmo modo que a suspensão da queda do salário real em 2004 resultou da melhoria da atividade econômica naquele ano. E por que o arrocho salarial serviu de “âncora” no combate à inflação? Por duas razões: porque contribuiu para diminuir o custo das empresas e porque, ao lado dos juros e dos saldos primários elevados, ajudou a conter a demanda agregada.
Como já vimos, a contenção da demanda resultante da rigidez monetária, fiscal e salarial, numa situação de elevado grau de monopolização da economia, só consegue derrubar a inflação se puder provocar uma recessão tão violenta que impeça aos cartéis de reajustarem seus preços como forma de compensar a queda da demanda. No entanto, como veremos, não houve essa recessão no período: ocorreu estagnação econômica no primeiro ano e recuperação da economia no segundo. Apesar disso, a inflação cedeu. Acreditamos que isso se deveu à incorporação ao arsenal anti-inflação da “âncora cambial” que, ao favorecer a entrada de produtos importados baratos, impediu a remarcação de preços pelos grupos cartelizados, a não ser os que controlam os setores com preços administrados, que têm seus reajustes garantidos por contrato. Na verdade, como o recrudescimento inflacionário de fins de 2002 decorreu sobretudo da forte valorização do dólar, que, ao subir 52% naquele ano, chegando a atingir R$ 4,00 em alguns momentos, encareceu violentamente em real os produtos importados e os preços internos dos produtos exportados, foi a derrubada dessa moeda que debelou a escalada da inflação: como vimos, o dólar caiu de R$ 3,53 em dezembro de 2002 para R$ 2,60 em fevereiro de 2005, acumulando uma queda real de 34,5%. Nesse sentido, a elevação dos juros e do superávit primário contribuiu para derrubar a inflação, não porque tenha contido a demanda interna – até porque a inflação não era de demanda -, mas porque derrubou o valor do dólar. Tanto é assim que, mesmo depois que a demanda interna cresceu – como veremos adiante -, a inflação seguiu caindo em compasso com a queda do dólar.
Trata-se da mesma forma de combate à inflação adotada pelo governo de Fernando Henrique. Muitos defendem a idéia de que o governo Lula radicalizou a política de seu antecessor. O documento do Ministério da Fazenda, elaborado por Marcos Lisboa, que criticou FH por haver gerado pouco superávit primário e propugnou elevar esse superávit – o que acabou ocorrendo –, parece dar razão a esses críticos. Na verdade, os dois lados estão equivocados. Fernando Henrique não se importou em gerar um superávit primário muito elevado para pagar os beneficiários dos juros altos que praticava porque preferia, em seu lugar, entregar-lhes patrimônio público, direta ou indiretamente. O governo Lula está entregando dinheiro, recursos públicos, aos credores, mas, salvo os casos dos leilões das áreas petrolíferas(55), não tem tido como política a entrega do patrimônio público(56). Essa, certamente, não é uma diferença pequena.

8. Política do FMI provoca encolhimento da economia em 2003

No entanto, do ponto de vista do andamento da atividade econômica, as conseqüências da adoção dessas quatro ”âncoras” não tem sido diferentes nos dois governos. Até conseguem momentaneamente derrubar a inflação, mas, ao conterem o investimento e a demanda e pressionarem a produção interna, substituindo-a por produção importada, impõem pesados sacrifícios à atividade econômica e ao emprego. A escalada inflacionária de fim de 2002 e que se estendeu até quase meados de 2003 foi debelada: o IGP-DI da FGV, que fora de 26,41% em 2002 e projetara uma inflação de 65% no último trimestre daquele ano, despencou para 7,67% em 2003(57); por sua vez, a inflação anualizada medida pelo IPCA do IBGE caiu de 17,2% em maio de 2003 para a faixa de 7% no primeiro bimestre de 2004(58).
O custo dessa estratégia de estabilização foi, como indicamos antes, o estancamento da economia e o recrudescimento do desemprego num primeiro momento. As empresas conseguiram melhorar sua rentabilidade graças à queda do salário real(59), mas, em face dos juros reais elevados e da queda da demanda(60), não se sentiram estimuladas a aumentar o investimento e a produção. Além disso, o setor público, pressionado pela elevação do superávit primário e dos encargos financeiros da dívida(61), também teve que comprimir seus investimentos(62). Assim, em 2003, de acordo com o IBGE, o investimento total no País caiu 6,6%, fazendo a taxa de investimento baixar da média de 18,8% do último triênio de FH (18,33% no último ano) para 18,05% no primeiro ano de governo Lula(63) . O resultado foi o estancamento do PIB naquele ano. Em sua primeira divulgação, o IBGE indicou uma queda de 0,2%, com redução de 1% na produção industrial, pressionada pela construção civil, cuja produção teria despencado 8,6% (o PIB per capita teria caído 1,5%). Em revisão posterior, que corrigiu o índice da construção civil, o PIB teria crescido 0,5% e a produção industrial, 0,1%. De qualquer forma, como o crescimento da população tem estado em torno de 1,3%, a renda per capita caiu. A contração do consumo final e do investimento internos, fazendo deprimir o que os keynesianos chamam de demanda agregada, teria levado, não a um mero estancamento, mas a um forte encolhimento do PIB se não fosse o forte aumento das exportações naquele ano: 21%. Por conseguinte, enquanto a participação do consumo das famílias no PIB baixava de 60,9% no ano 2000 para 56,7% em 2003, a participação das exportações aumentava de 10,7% para 16,4%(64).
O resultado desse estancamento econômico foi o crescimento da taxa de desemprego. Pelo critério de desemprego total do SEADE/DIEESE (que soma o desemprego aberto com o desemprego oculto), a taxa de 2003 foi de 19,9% da força de trabalho na região metropolitana de São Paulo, contra 19% em 2002(65). Foi a maior taxa desde que se começou a medir desemprego no Brasil. A nível nacional, usando o critério de desemprego aberto do IBGE (que não considera o desemprego oculto), a taxa subiu de 11,7% em 2002 para 12,3% em 2003, se considerarmos as principais regiões metropolitanas do País(66). Já vimos como essa elevação do desemprego, ao diminuir o poder de negociação dos trabalhadores, se refletiu na violenta queda do salário real.

9. Política exterior de Lula garante crescimento em 2004

O bom senso indica que as pessoas aceitam um sacrifício provisório desde que o prêmio seja a garantia – ou pelo menos a perspectiva – de uma melhoria duradoura no futuro. As pessoas de bom senso no governo, dentre as quais reputamos o próprio Presidente Lula, se deixaram convencer da necessidade do sacrifício num primeiro momento porque lhes foi prometido pelos membros da equipe econômica que essa seria a condição para viabilizar um crescimento auto-sustentado num futuro próximo, que garantiria a geração de emprego, a distribuição de renda e a “inclusão social”. Isso porque, como vimos, segundo eles, a elevação do saldo primário das contas públicas permitiria diminuir a relação dívida/PIB, conquistando, assim, a confiança dos credores, o que viabilizaria a queda dos juros, condição para a retomada do investimento e da produção. Na visão da equipe do Ministério da Fazenda, criadas essas condições macroeconômicas “consistentes”, caberia ao “mercado” a tarefa de promover a retomada do investimento e do crescimento econômico(67); na visão da equipe do Ministério do Planejamento, criadas essas condições macroeconômicas, caberia ao governo adotar políticas de desenvolvimento, como a política industrial, com base no consumo de massa, para garantir a retomada sustentada do crescimento econômica(68).
Ao longo de 2004, o quadro estagnacionista do primeiro ano de governo começou a mudar, e a economia começou a movimentar-se. Parecia, então, que os fatos estavam dando razão aos arautos da política econômico-financeira vigente. Eles, que haviam derrubado a inflação, agora estavam garantindo a retomada do crescimento econômico. Com isso, o grupo de Palocci fortaleceu-se dentro do governo, debilitando os críticos internos da sua política econômica, dentre eles o ministro José Dirceu. Mas se, ao invés de ficarmos na aparência do fenômeno, tentarmos um mergulho na sua essência, podemos concluir que, mais uma vez, como sempre, as coisas aparecem na superfície com sinal trocado. Os fatos, se examinados com cuidado, podem mostrar que têm razão aqueles que, havendo criticado o programa econômico de FH, seguem criticando os aspectos dele que vêm tendo continuidade no governo Lula(69).
Vamos aos fatos. A partir de março de 2004, a produção industrial iniciou um processo de recuperação, que rapidamente entrou num ritmo acelerado, produzindo uma forte taxa de crescimento durante o ano: 8,3% a nível nacional(70) e 8,5% em São Paulo(71). Foi a maior taxa de crescimento desde o ano do Plano Cruzado (1986). Esse elevado crescimento industrial alavancou o PIB(72), que, pela primeira estimativa do IBGE, subiu 5,2%, dando um crescimento per capita de 3,7%(73), batendo com a previsão que o IPEA fizera em dezembro, quando elevou sua estimativa de 4,6% para 5,2%. Foi o maior crescimento desde 1994. Como conseqüência, a taxa de desemprego caiu pela primeira vez depois de três anos(74): a nível nacional, pelo levantamento do IBGE, no critério de desemprego aberto, caiu de 12,3% em 2003 para 11,5% em 2004; na região metropolitana de São Paulo, pelo levantamento do DIEESE/SEADE, no critério de desemprego total, baixou de 19,9% em 2003 para 18,7% em 2004. Pelos dados levantados pelo Ministério do Trabalho, foram criados 1,523 milhão de “empregos formais”, isto é, com carteira assinada. E, pela pesquisa do IBGE, o nível de emprego industrial cresceu 1,9% no ano(75). Essa importante melhoria econômica ensejou uma forte queda do índice de falências e concordadas: segundo o SERASA, o número de falências decretadas caiu 22,5% em 2004 sobre 2003 e o de concordadas deferidas, 20% – revelando o melhor quadro desde o ano 2000.
Apesar de um crescimento de 5,2% do PIB não ser nenhum espetáculo, dada a trajetória histórica do Brasil(76), é um crescimento respeitável nesse período de estagnação econômica que tomou conta do País nas últimas duas décadas e meia(77). Nesse período, em apenas dois momentos, ocorreu crescimento superior: nos dois primeiros anos do governo Sarney (1985-86), aí incluído o período do Plano Cruzado, e nos dois anos de governo Itamar (1993-94). A questão, então, é descobrir as causas desse crescimento para, a partir daí, reunir os elementos para prospectar as perspectivas. Ou seja, a questão é saber se esse crescimento veio para ficar, se é um crescimento auto-sustentado(78), ou se é mais um daqueles espasmos de crescimento que vêm caracterizando a economia brasileira desde 1981 – o chamado vôo-de-galinha. Crescer um ou dois anos para depois retornar à estagnação ou mesmo recessão já ocorreu três vezes desde então: nos dois momentos citados acima (Sarney e Itamar) e no ano de 2000 (FH).
Primeiro cabe decifrar um mistério: como, numa situação de juros reais e saldos primários das contas públicas elevados, e taxa de câmbio e salário real no fundo do poço, o que equivale a uma situação que deprime a demanda interna e desanima os investimentos, a produção industrial e o PIB conseguiram experimentar um respeitável crescimento? O que ocorre é que a produção industrial, que alavancou o PIB, cresceu a despeito desses fatores negativos, que empurraram a demanda agregada interna para baixo, porque contou com a válvula de escape das exportações. A participação do consumo no PIB, que fora de 60,9% em 2000 e já baixara para 56,7% em 2003, caiu para 55,3 em 2004. Enquanto isso, a participação das exportações aumentou de 10,7% para 16,4% e 18%(79). Lembremo-nos de que, em 2003, apesar da forte queda da demanda interna, o PIB não desabou porque aquela queda foi compensada pelo aumento das exportações, que foi de 21%. Em 2004, o crescimento das exportações acelerou mais ainda: subiu 32%(80), sendo que as exportações de produtos industrializados do estado de São Paulo cresceram 32,2%(81). Demonstração de que foram as exportações que puxaram o crescimento do PIB é o fato de que os setores que mais cresceram foram os que tiveram maior expansão no volume exportado: a produção do setor de bens de capital cresceu 19,7%, enquanto suas exportações cresceram 54%(82); outro setor que teve forte crescimento foi o de bens duráveis de consumo (21,8%) e, dentro dele, o subsetor de veículos automotores (29,9%), sendo que o número de unidades exportadas de veículos leves, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), cresceu 17,8% no ano(83).
Outro mistério a decifrar: como, apesar de terem seus custos pressionados para cima pelos juros elevados e pela elevação da carga tributária, o que poderia empurrar sua rentabilidade para baixo, a qual, além disso, era prejudicada pelo câmbio desfavorável, as empresas exportadoras puderam aumentar sua produção com destino ao comércio exterior?
Em primeiro lugar, a violenta queda do salário real entre 1998 e 2004, que, a nível nacional, foi de 30,87%(84) e, na região metropolitana de São Paulo, de 31,88%(85), derrubou fortemente os custos trabalhistas das empresas, mais do que compensando a manutenção dos juros num patamar elevado. Se sua produção tivesse como destino o mercado interno, elas perderiam pelo lado da demanda, cujo crescimento foi bloqueado pela queda do salário, o que ganharam pelo lado dos custos, mas, como compensaram com o aumento das vendas no mercado externo, não sofreram com a debilidade da demanda interna.
Em segundo lugar, depois de três anos de estagnação (2001-03), as empresas industriais estavam com elevado nível de capacidade ociosa – 29,5% na média de 2003, pela pesquisa da CNI, e na faixa de 20% pela Sondagem da Indústria de Transformação da FGV -, podendo, assim, elevar sua produção sem necessidade imediata de realizarem novos investimentos, apenas usando capacidade já instalada e em ociosidade. Assim, seu custo unitário baixava à medida que a produção aumentava. No último trimestre de 2004, a capacidade ociosa havia reduzido para 23% pela pesquisa da CNI(86) e, em janeiro de 2005, para 16,4%, na Sondagem da FGV.
E, por último, quanto mais elevam a produção para exportação, mais aumenta o giro de seu capital, proporcionando, em conseqüência, um aumento da lucratividade por unidade de capital aplicado. O resultado foi que, a despeito da adversidade dos juros, da carga tributária e do câmbio, as empresas industriais experimentaram a maior lucratividade desde 1994: as grandes empresas aumentaram a margem de lucro sobre o faturamento de 10,2% em 2003 para 12,4% de janeiro a setembro de 2004, enquanto as pequenas e médias subiram de 3% para 5,1%(87). A margem de lucro das grandes empresas é muito maior do que a das pequenas e médias, não apenas em face de seu poder de monopólio, mas também porque são elas que conseguem penetrar mais no mercado externo, enquanto as pequenas e médias têm que amargar a debilidade atual do mercado interno.
Mas, para poderem aumentar as exportações, não basta as empresas terem seus custos reduzidos pelo corte do salário e o uso de capacidade ociosa. Elas têm que contar com compradores interessados em seus produtos no mercado internacional. E isso vem ocorrendo nos últimos dois anos. Poder-se-ia atribuir esse fato ao crescimento que, no último biênio, depois de vários anos de estagnação, vem experimentando a economia mundial: o PIB mundial, depois de crescer 3,9% em 2003, pode ter crescido, na projeção do FMI, 4,9% em 2004 – a maior taxa de crescimento desde 1984. É evidente que esse crescimento da economia contribuiu para dinamizar o comércio internacional(88) e, assim, ajudou a alavancar as exportações brasileiras. Não explica, porém, toda a verdade. Aliás, explica uma parte pequena da verdade. Um crescimento de 4,9% do PIB mundial foi capaz de alavancar um crescimento de 18,3% nas exportações mundiais, mas como, por si só, conseguiria alavancar um crescimento de 32% das nossas exportações?
A parte principal da verdade está em outra esfera. É possível demonstrar, até matematicamente, que a política exterior do governo Lula, que rompeu o alinhamento automático com os EUA, e buscou fortalecer a unidade da América do Sul e aprofundar as relações diplomáticas com a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul e o Oriente Médio, além de um maior estreitamento dos laços com vários países da União Européia, cumpriu papel decisivo no espetacular aumento das exportações. A diplomacia brasileira, que antes estava a reboque dos interesses dos EUA, foi posta a serviço dos interesses nacionais e do comércio exterior brasileiros, como já o fizera Getúlio Vargas, Santiago Dantas e Geisel. Diferentemente das políticas monetária, cambial e fiscal – que constituem aspectos decisivos da política macroeconômica, e que estão empurrando a economia para baixo -, a política de comércio exterior, diretamente comandada pelo Presidente Lula, vem cumprindo papel decisivo no sentido de dinamizar a economia, ao diversificar e abrir novos mercados e assim intensificar as nossas exportações.
No entanto, segundo a equipe do Ministério da Fazenda, essa política de comércio exterior só teve efeito secundário no forte crescimento das exportações, cabendo a responsabilidade principal à sua política de câmbio flutuante: “A política de câmbio flutuante, aliada a uma agressiva agenda de comércio exterior, vem permitindo um significativo ajuste das contas externas apoiado no forte crescimento das exportações”(89). Marcos de Barros Lisboa, secretário de Política Econômica do Ministério e autor do documento, fica nos devendo a explicação de como uma “política de câmbio flutuante” que tem valorizado fortemente o real – e, portanto, tornando menos competitivas nossas exportações – foi capaz de promover um “forte crescimento das exportações”.
Vejamos os dados da tabela 9:

Tabela 9
Exportações brasileiras por destino – 2002/2004

Blocos/ Países
2002
2003
2004
US$ bi Var. % US$ bi Var. % US$ bi Var. %
U.E. 15,40 1,07 18,46 19,84 24,16 30,87
Nafta 18,48 11,22 20,41 10,46 25,18 23,39
P.Andino 2,68 5,91 2,56 -4,52 4,16 62,76
Mercosul 3,31 -47,97 5,67 71,31 8,91 57,13
O. Médio 2,33 14,84 2,80 20.38 3,69 31,41
EUA 15,35 8,21 16,69 8,72 20,04 20,05
China 2,52 37,51 4,53 79,83 5,44 20,02
Argentina 2,34 -53,19 4,56 94,77 7,37 61,65
Venezuela 0,79 -27,07 0,60 -23,96 1,46 141,79
A Sul 0,48 12,70 0,73 53,49 1,04 41,28
Índia 0,65 129,11 0,55 -15,37 0,65 17,78
Rússia 1,25 13,59 1,50 19,77 1,66 10,52

Fonte: MDIC-SECEX

Pode-se observar, pelos dados da tabela acima, que as exportações brasileiras para os EUA e o bloco que lideram (Nafta) aumentaram bem menos do que a média das exportações nos anos 2003 e 2004: estas cresceram 21% no primeiro ano e 32% no segundo, enquanto a taxa de crescimento para os EUA foi, respectivamente, de 8,72% e 20,75%, e, para o Nafta, de 10,43% e 23,39%. Enquanto isso, se considerarmos os dois anos, as exportações para a Argentina, a China, a África do Sul e o Mercosul aumentaram bem mais do que a média; no caso da Venezuela, depois de uma queda em 2003, experimentaram um violento crescimento em 2004 (141,79%); para o Oriente Médio, cresceram dentro da média e, para o Pacto Andino, depois de uma ligeira queda no primeiro ano, subiram 62,76% em 2004; para a União Européia, expandiram-se dentro da média; até agora, dentro das prioridades da política externa, apenas a Rússia e a Índia ainda não responderam muito bem.
Puxada pelas exportações e, portanto, pelos setores exportadores, a reanimação econômica de 2004 aos poucos foi se espalhando para o conjunto da economia. A correia de transmissão foi a massa salarial: cálculos feitos pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), entidade de grandes empresários brasileiros, indicam que a massa salarial cresceu 2,3% em termos reais em 2004; levantamento da CNI mostra um crescimento maior se considerarmos o setor industrial: 9,01%(90). O levantamento do IBGE apresenta cifra semelhante: aumento de 9%, depois de haver caído 4,2% no ano anterior(91). Apesar do nível muito baixo a que chegaram os salários reais, que, além disso, estavam em queda na fase inicial, a massa salarial nos setores exportadores foi crescendo à medida que, com o aumento da produção, o nível de emprego também foi subindo: como conseqüência, as contratações líquidas no conjunto do país cresceram 3,2% em dezembro de 2004 em relação a igual mês de 2003 (92). Já vimos que, pela pesquisa do IBGE, o emprego industrial cresceu 1,9% de 2003 para 2004.
Esse crescimento da massa salarial atuou no sentido de melhorar a demanda interna, estimulando, assim, o aumento da produção para o mercado interno. Assim, as vendas no comércio varejista, que haviam caído 3,67% em 2003, e vinham caindo desde 2001, subiram 9,25% em 2004 em relação a 2003(93). Na região metropolitana de São Paulo, no conjunto de 2004, o faturamento do comércio cresceu 5,42%, o maior desde 2000; em 2003, a queda fora de 3,86%(94). Esse aumento não se deveu principalmente ao aumento da massa salarial. Tanto é que os setores que dependem do poder de compra do salário foram os que menos cresceram: a produção industrial de bens de consumo não duráveis (como tecidos, vestuário, calçados, alimentos) só cresceu 4% em 2004, menos da metade do crescimento do conjunto da indústria(95); enquanto isso, as vendas de tecidos, vestuário e calçados também só cresceram 4,73%, contra 9,25% do conjunto das vendas(96). O baixo crescimento da produção e das vendas dos não duráveis acarretou como resultado perverso a destruição de emprego nesses setores: se considerarmos em bloco os ramos de tecidos, vestuário, calçados, papel e gráfica, produtos de metal e cimento, que são responsáveis por 43% da força de trabalho industrial do País, houve uma perda de 100 mil empregos no ano, sendo que no ramo de vestuário a queda chegou a ser de 7,5%(97).
O aquecimento do mercado interno se deveu principalmente ao retorno do consumidor ao crediário. Exemplo disso é que os setores da economia em que as vendas internas mais cresceram em 2004 foram o de eletrodomésticos e o de veículos(98), que dependem de financiamento. A produção deles também teve forte crescimento a nível nacional: 18,7% e 29,2%, respectivamente(99). Apesar dos juros altos, a melhoria da economia e o aumento dos prazos de financiamento(100) encorajaram o consumidor a endividar-se. Um fato importante também foi a ilusão monetária: apesar de permanecerem elevadas, as taxas nominais de juros no crediário baixaram ao longo de 2004 até setembro, a partir de quando, sob a pressão do aumento da taxa selic, voltaram a subir(101). Ainda que os juros reais não hajam caído na mesma proporção, o consumidor se ilude com sua queda nominal e vai às compras(102). Ele só percebe que se iludiu na hora do pagamento da prestação, que nem sempre cabe no salário. E aí vem a inadimplência. Além disso, o salário real, que vinha em queda, começou a subir, sobretudo na indústria voltada para o mercado externo, a partir de setembro de 2004: na comparação com igual mês do ano anterior, desde então vem aumentando na faixa de 2%(103). A melhoria do salário também encoraja o consumidor a usar o crediário.

10. Contradição entre política externa e política econômica

Quando iniciou-se o processo de recuperação da economia em 2004, o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central apressaram-se a alardear que isso era confirmação de que sua política está correta. Mais ainda, que essa reanimação econômica fora produzida por sua política econômica(104). Na verdade, como demonstramos, a economia teve essa boa performance a despeito da política macroeconômica encabeçada pelo Ministério da Fazenda e em contradição direta com ela. Esse resultado se deve, como vimos, ao espetacular aumento das exportações, que foi obtido sobretudo pela política de comércio exterior resultante da diplomacia do governo Lula, encabeçada diretamente pelo Presidente, e que está em franca contradição com a política econômica do Ministério da Fazenda. Enquanto esta tem submetido o andamento da nossa economia às regras impostas pelo FMI e, por seu intermédio, aos interesses dos donos das finanças internacionais, principalmente dos EUA, a política externa, ao diversificar as relações diplomáticas e, em decorrência, o comércio exterior brasileiro, permite um maior grau de independência econômica do País, favorecendo o crescimento da economia. No entanto, os efeitos econômicos positivos dessa política exterior não podem suplantar indefinidamente o impacto negativo de uma política macroeconômica que, ao apostar dogmaticamente no primado da estabilidade monetária sobre o desenvolvimento, opera no sentido de restringir a atividade econômica. E essa contradição já começa a se manifestar.
Um primeiro problema diz respeito à destinação dos saldos comerciais obtidos com o aumento das exportações. Em lugar de serem usados, pelo menos em parte, para fortalecer nossas reservas cambiais disponíveis, e assim reduzir a vulnerabilidade externa da economia, os US$ 24,8 bilhões de 2003 foram inteiramente destinados a pagar os encargos do passivo externo (juros, lucros e dividendos)(105) e outros “serviços” de empresas estrangeiras, como fretes, seguros e royalties(106); em 2004, a situação se agravou mais ainda, pois, depois de cobrir o saldo negativo da balança de serviços, a sobra de US$ 10,7 bilhões (superávit em conta corrente) dos US$ 33,7 bilhões de saldo comercial foi utilizada para abater dívida externa, a qual reduziu de US$ 235,4 bilhões em dezembro de 2003 para US$ 220 bilhões em dezembro de 2004(107). As reservas líquidas só conseguiram aumentar um pouco nesse último ano, em US$ 3,68 bilhões, porque o Banco Central decidiu comprar dólares dos especuladores com o objetivo alegado de recompor as reservas, mas, na verdade, numa tentativa disfarçada de segurar a forte queda do dólar. O real valorizado servia à política do Banco Central de combate à inflação, mas até a mente turva das autoridades monetárias é capaz de perceber que uma sobrevalorização muito acentuada pode prejudicar as exportações e comprometer sua disposição de honrar os encargos do passivo externo. Por isso, começaram a intervir no “mercado” a partir dos últimos meses de 2004.
No entanto, diante do atrativo dos juros, do superávit primário e do superávit comercial elevados, que, além de permitir alta rentabilidade, garante seu recebimento e expatriação, os capitais externos continuam adentrando ao País em grandes volumes(108), aumentando a oferta de dólares e forçando seu preço para baixo. A continuar esse quadro, não são meras intervenções pontuais do BC no mercado cambial que vão conseguir promover a necessária desvalorização do real.
Ao perceber isso, o Banco Central vem acelerando a compra de dólares: US$ 2,8 bilhões em dezembro de 2004, outros US$ 2,8 bilhões em janeiro de 2005 e US$ 4,0 bilhões em fevereiro(109). Como na primeira quinzena de março houve uma certa reação do câmbio (o dólar chegou a atingir R$ 2,766 no dia 15 do mês), a equipe do BC parece ter passado a acreditar que seus leilões de compra estavam dando resultado. Algum resultado certamente produziram. A equipe do BC deixa de considerar, porém, um fato mais importante: depois da declaração do presidente do FED estadunidense (seu Banco Central), Alan Greenspan, de que os juros dos EUA seguirão subindo, a taxa de longo prazo (10 anos) dos títulos do Tesouro daquele país se elevou de 4% em janeiro deste ano para 4,6% em março, incentivando a demanda de dólares no mercado mundial (para aplicar no mercado estadunidense) e promovendo uma ligeira valorização dessa moeda em março. Mas nada garante que esse movimento se consolide, dada a insegurança que os gigantescos déficits gêmeos dos EUA provocam nos especuladores internacionais.
Assim, o mercado de dólar tem operado como uma gangorra: os juros internos elevados, combinados com superávites primário e comercial igualmente elevados e o enorme rombo nas contas internas e externas dos EUA, empurram o dólar para baixo; enquanto isso, a aceleração dos leilões de compra de dólares pelo BC, combinada com a ameaça de elevação dos juros nos EUA, puxam o dólar para cima. Explica-se assim a enorme volatilidade que vem caracterizando a nossa taxa de câmbio: depois de haver subido de R$ 2,59 no começo de março deste ano para R$ 2,766 no dia 15 do mês, baixou novamente para R$ 2,668 no último dia do mês. Percebe-se que o comportamento do preço do dólar é volátil, mas as forças que o empurram para baixo têm prevalecido.
As próprias autoridades do BC parecem estar se dando conta de que nem mesmo essa aceleração dos leilões de compra de dólares será capaz de provocar uma desvalorização do real suficiente para garantir os saldos programados na balança comercial. Daí que começam a inventar outros mecanismos destinados a atingir esse efeito. Falam em autorizar a abertura de contas em dólares dentro do País, em incentivar os exportadores a manter dólares no exterior ou mesmo que nacionais transfiram dólares para fora. Ou seja, pretendem, de um lado, dificultar a entrada ou a troca de dólares por real e, de outro, estimular sua saída, como forma de bloquear sua tendência a cair. É mais uma tentativa superficial de enfrentar o problema, já que deixa de atacar sua raiz, que está na rígida política monetária. Ademais, são medidas que, além de diminuir o controle do BC sobre as reservas cambiais, criam mecanismos que favorecem a dolarização da economia e diminuem as reservas cambiais, aumentando a vulnerabilidade externa da economia. E já conhecemos esse filme no caos em que virou a economia argentina em 2001.
Em suma, a substancial melhoria das contas externas, obtida graças à adoção de uma política externa independente e de uma conseqüente política de comércio exterior, em lugar de ser utilizada para fortalecer nossa economia, tem estado a serviço de uma estratégia voltada ao atendimento dos credores externos, da mesma forma que a geração de superávites primários nas contas públicas vem servindo aos credores da dívida pública. Assim, apesar do gigantesco esforço exportador e da aceleração das compras de dólares pelo BC, nossas reservas líquidas, se comparadas com o valor das importações, seguem num nível muito baixo(110), o que deixa a economia brasileira muito vulnerável diante de qualquer turbulência internacional.
Além disso, um crescimento econômico puxado pelas exportações, no qual até a dinamização do mercado interno foi em parte movida pela massa salarial gerada no setor exportador, tem limites muito estreitos, além de deixar nossa economia muito vulnerável às evoluções da economia mundial. Vários fatores conspiram para a redução do ritmo de crescimento das exportações brasileiras neste ano. Já há até quem esteja prevendo a queda do volume exportado. A Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (FUNCEX) prevê que, caso o dólar se mantenha num patamar inferior a R$ 2,70, o volume das exportações brasileiras cairá 5% neste ano. O vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, é ainda mais pessimista e projeta queda de 15% na exportação de produtos manufaturados, que representam 54% das exportações brasileiras(111). Não acreditamos que ocorra essa queda no volume das exportações, mas, caso o câmbio permaneça nos níveis atuais, seguramente haverá uma forte queda do seu ritmo de expansão(112).
Apesar de disfarçadamente virem intervindo no câmbio (comprando dólares) desde o final de 2004, as autoridades monetárias têm difundido que essa taxa de câmbio não prejudica as exportações, alegando que o forte crescimento da produtividade compensaria essa defasagem cambial. Na verdade, a produtividade industrial não cresceu tanto assim. Se for computada tomando como base o pessoal ocupado, ela teria crescido 5,3% nos 11 primeiros meses de 2004 em relação a igual período do ano anterior, depois de três anos de queda, mas, se adotarmos o critério correto e tomarmos como referência as horas trabalhadas, o crescimento foi de apenas 2,7%(113). Esse aumento da produtividade tanto não foi suficiente para compensar a valorização do real que, segundo estudo da Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (FUNCEX), houve uma queda de 12,7% na rentabilidade das exportações brasileiras em 2004.
A área econômica do governo também alega que, apesar dessa defasagem cambial, as exportações seguem crescendo. Não percebem que o efeito de uma queda do dólar sobre as exportações ocorre com uma defasagem temporal de pelo menos seis meses. Isso porque, como os contratos de exportação são feitos a prazo mais longo, o câmbio que está vigorando nas exportações de hoje é o de 4, 6 ou 8 meses atrás, havendo casos de até dois anos. O câmbio do início do ano tenderá, pois, a impactar as exportações apenas no meio do ano. Segundo Fernando Ribeiro, da FUNCEX, “mantido esse patamar [da cotação do real], vamos ver um resultado negativo com redução das exportações já no começo do segundo semestre”(114). Agrega-se à apreciação do real, sua enorme volatilidade cambial: “O Brasil é o país que apresenta a maior volatilidade cambial. A média da diferença entre a cotação máxima e a mínima da moeda brasileira atingiu 22%”(115). Disputam o segundo lugar o Reino Unido, o Japão, a Rússia, o Chile e a Coréia, com variação de 11,1% e 10,4%(116). Essa volatilidade deixa o exportador inseguro nas suas transações internacionais, na medida em que não consegue formar seu preço – e, conseqüentemente, sua margem de lucro – de forma minimamente planejada, podendo desestimulá-lo a seguir procurando o comércio exterior. Não deixa de ser irônico o Ministério da Fazenda, em documento mais uma vez da lavra de Marcos Lisboa, tentar atribuir o crescimento das exportações a uma suposta redução da volatilidade cambial: “A estabilidade alcançada nos preços e a redução da volatilidade cambial têm levado a sucessivos recordes na balança comercial e, pela primeira vez em dez anos, a um superávit na conta de transações correntes”(117).
A elevação dos juros reais desde o último quadrimestre de 2004, ao incrementar os custos industriais, torna ainda mais adversa a capacidade exportadora das empresas instaladas no País. E, para agravar a situação, até mesmo a revista arqui-conservadora The Economist prevê que, a partir de 2005, será retomada a desaceleração da economia mundial. Num quadro assim tão adverso para os exportadores, nem mesmo a política de diversificação comercial da diplomacia brasileira poderá conseguir resultados muito favoráveis nas exportações, pois os novos parceiros comerciais teriam dificuldade de absorver produtos brasileiros mais caros numa situação em que suas economias, impactadas pela desaceleração mundial, poderiam também enfrentar dificuldades.
Por fim, conforme examinamos antes, mesmo pressionadas por juros e carga tributária elevados e real supervalorizado, as empresas instaladas no País puderam atender à crescente demanda do mercado externo porque contavam com uma grande capacidade ociosa, além de salários reais baixos e em declínio. Quanto ao salário, já vimos que começaram a reagir. No caso da capacidade ociosa, os dados indicam que não tarda muito a se esgotar. Os economistas consideram que uma utilização de 90%, em média, da capacidade instalada na indústria significa, na prática, o esgotamento da capacidade ociosa, na medida em que, como se trata de uma média, muitos setores ou empresas terão chegado ao seu limite, impondo “gargalos” ao crescimento de outros setores ou empresas. Pois bem, pela pesquisa da CNI, as grandes empresas, que são as que dominam o setor exportador, atingiram, no último semestre de 2004, 83% de sua capacidade instalada(118); e, pela Sondagem da Indústria de Transformação da FGV, o conjunto dessa indústria alcançou 83,6% em janeiro de 2005. Basta o PIB crescer mais um ano ao ritmo de 2004 para que a capacidade ociosa seja esgotada, a não ser que se realizem os investimentos necessários ao aumento da capacidade instalada.
Nesse quadro, a elevação dos juros reais, da carga tributária e do valor externo da moeda, como vem ocorrendo desde o ano passado, pode ser fatal para o processo em curso de reanimação da economia. Os problemas já começaram a aparecer. Desde setembro de 2004, isto é, desde quando a taxa de juros do Banco Central retomou sua trajetória ascendente, a produção industrial desacelerou o ritmo anterior. E por isso a produção do último trimestre do ano cresceu a um ritmo menor do que o dos dois anteriores: considerando a comparação com igual trimestre do ano anterior, a produção do segundo trimestre cresceu 10%, a do terceiro 10,4% e a do quarto 6,3%(119); mas, se a comparação for com o trimestre imediatamente anterior, as taxas foram de 3,4%, 2,5% e 0,9%(120), respectivamente. Estudo realizado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI, com base nos dados levantados pelo IBGE, indica a mesma tendência: a produção industrial cresceu 6,6% entre abril e agosto de 2004, havendo baixado o ritmo para 0,4% de setembro de 2004 a janeiro de 2005. Essa forte desaceleração ocorreu com praticamente todos os setores: a indústria têxtil, cuja produção crescera 11,4% no primeiro período, sofreu retração de 7,5% no segundo; a de vestuário cresceu 12,1% no primeiro período e caiu 1,8% no segundo; a de automóveis despencou de um crescimento de 19,6% no primeiro para uma queda de 1,9% no segundo(121).
Ao mesmo tempo, de acordo com a sondagem industrial do quarto trimestre do ano, realizada pela CNI, o índice de acumulação de estoques da indústria em geral aumentou de 49,6 no terceiro trimestre para 51,3 no último, e o índice das grandes empresas o fez de 51,5 para 53,8(122). Isso se deve à queda das vendas industriais, que vinha ocorrendo desde setembro: depois de dessazonalizadas, caíram 4,2% de setembro de 2004 a janeiro de 2005(123). Com os estoques em crescimento, as grandes indústrias estacionaram a utilização da capacidade instalada, mantendo-a em 83% no terceiro e no quarto trimestres(124).
O comportamento da produção industrial em janeiro de 2005 expressou essa mesma tendência. O índice de atividade industrial em São Paulo, descontado o efeito sazonal, caiu 3% em relação a dezembro de 2004; em relação a janeiro de 2004, cresceu 4,2%, isto é, menos da metade do crescimento industrial de 2004(125). Esses dados revelam uma forte desaceleração do ritmo da indústria. Normalmente, quando isso ocorre no começo do ano, significa que as festas de fim de ano (outubro a dezembro) não conseguiram esgotar os estoques produzidos no terceiro trimestre do ano, e é um forte sinal de que não se garantiram as condições para o crescimento sustentado. A saída em janeiro de 114 mil pessoas da população economicamente ativa (PEA) na região metropolitana de São Paulo, a despeito da queda da taxa de desemprego, é também um péssimo indício das perspectivas econômicas(126). Essa tendência foi agravada pela elevação da taxa de desemprego de 16,7% em janeiro para 17,1% em fevereiro(127). Obviamente, ainda é preciso esperar pelos resultados do conjunto do primeiro trimestre para se poder prognosticar melhor a tendência.
A desaceleração industrial provocou também a desaceleração do conjunto da economia. O PIB do quarto trimestre de 2004 só cresceu 0,4% em relação ao terceiro e 4,9% em relação a igual período do ano anterior, quando a expansão do terceiro trimestre havia sido, respectivamente, de 1,1% e 6,1%. No último trimestre, além disso, a formação bruta de capital fixo caiu 3,9% em relação ao terceiro(128).
Como resultado da desaceleração econômica a partir do fim do ano retraiu a criação de empregos formais, ou seja, com carteira assinada: de acordo com o Ministério do Trabalho, haviam sido criados 1,8 milhão desses empregos até outubro, levando-o a projetar a criação de 2 milhões durante o ano; no entanto, ao final, só haviam sido criados 1,523 milhões de vagas formais, porque só em dezembro foram eliminadas 352.093 vagas(129). Pela pesquisa do IBGE, o mesmo fenômeno ocorreu com o emprego industrial a nível nacional: em outubro e novembro, na comparação com o mês imediatamente anterior, houve queda de 0,1% no nível de emprego, sendo que em dezembro a queda foi de 0,2%(130). Segundo a FIESP/CIESP, fato idêntico ocorreu com o emprego industrial paulista: depois de crescer sistematicamente desde janeiro de 2004 (em relação ao mês anterior), estacionou em novembro e caiu 0,44% em dezembro(131).
Essa desaceleração da economia já levou o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, a rever para baixo sua previsão de crescimento para 2005: na previsão de dezembro de 2004, o PIB cresceria 3,8% neste ano e, na previsão de março de 2005, a taxa seria de apenas 3,5%(132). Nesse quadro, em lugar de expandir os investimentos públicos, como forma de conter essa tendência da economia para baixo, a equipe econômica decidiu cortar os investimentos orçamentários que já haviam sido aprovados para 2005: passaram o facão em R$ 9 bilhões, diminuindo-os de R$ 21,4 bilhões para R$ 12,4 bilhões.
Assim, o tipo de reanimação econômica que o Brasil vem experimentando desde 2004 pode ser bloqueado tanto pelo lado da demanda, com o enfraquecimento do comércio exterior, quanto pelo lado da oferta, com o esgotamento da capacidade ociosa. Sua conversão em crescimento auto-sustentado, como vem prometendo o governo Lula, depende, portanto, do bom equacionamento desses dois problemas.

Notas
1.Doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM), com Pós-Doutoramento na USP; professor de Economia no Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo; autor de vários livros sobre Economia Política, Economia Mundial e Economia Brasileira. Seus mais recentes livros são: Ascensão e queda do império americano, editado em 2001 pela Mandacaru/CPC-UMES, e A longa agonia da dependência – economia brasileira contemporânea (JK/FH), editado em 2004 pela Alfa-Omega.
2.Fonte: SOBEET
3.Cf. “Melhores e maiores”. Revista Exame.
4.Cf. Banco Central do Brasil. Censo de capitais estrangeiros 2001.
5.Fonte: Banco Central do Brasil
6.BNDES. Privatização no Brasil – 1990-1994/1995-2002. Rio de Janeiro,
publicação preparada pela Área de Desestatização e Reestruturação, jul. 2002.
7.Fonte: Banco Central do Brasil
8.Fonte: Banco Central do Brasil..
9.Fonte: IBGE. Média aritmética das taxas anuais do período.
10.Fonte: SEADE/DIEESE.
11..Fonte: SEADE. Disponível em: http://www.seade.gov.br/cgi-bin. Acesso: 14.03.2005..
12.Fonte: IBGE.
13.Ibid.
14.Ibid., em convênio com a ONU.
15. Fonte: FGV. Revista Conjuntura Econômica
16.Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.
17.CVRD – Companhia Vale do Rio Doce.
18.É uma mudança ainda não inteiramente consolidada, conforme se pode deduzir da substituição da diretoria do Banco no final de 2004.
19..Há, no entanto, uma contradição na política petrolífera, já que a agência reguladora do setor (a ANEP) prosseguiu com os leilões das áreas petrolíferas, muitas das quais com reservas já descobertas pela empresa. Um fato importante é que a própria empresa, sozinha ou em consórcio, tem arrematado a maior parte das áreas.
20.O “acordo” firmado durante o governo Lula se encerrou em março de 2005. No dia 28 desse mês, depois de vários membros do governo haverem declarado não ser necessária sua renovação, o ministro Palocci anunciou que o “acordo” não seria renovado, mas não há nada que indique uma mudança imediata da política econômica imposta por esse receituário.
21.Sigla para Sistema Especial de Liquidação e Custódia.
22.Fonte: IBGE. Série histórica – IPCA dessazonalizado. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso: 18.03.2005, 13h25m.
23.Ver também tabela 4 e nota 28 adiante.
24.Vejam, por exemplo, o resumo dessa posição em recente documento oficial do Banco Central: “Os primeiros resultados relativos ao nível de atividade no início de 2005 apontam um arrefecimento do ritmo de expansão, dando seguimento ao processo delineado ao longo do segundo semestre do ano passado. Tal resultado (…) é esperado, na medida em que foram atingidos níveis de produção historicamente elevados [diga-se: 5,2% em 2004], e contribui para a sustentabilidade do crescimento” (Banco Central. Relatório trimestral de inflação. Cap 1 – Nível de atividade, 29.03.2005, p.1. Disponível em: http://www.bacen.gov.br. Acesso 30.03.2005, 19h05m. Grifo nosso). Os tecnocratas do BC, portanto, fazem festa com a desaceleração da economia desde que começaram a elevar a taxa básica de juros e racionalizam que esse ritmo menor de expansão econômica, que estimam em 4% para 2005, é que garantirá a “sustentabilidade do crescimento”. Na verdade, 4% ainda é um ritmo elevado para eles; o que eles pretendem mesmo é enquadrar a economia nos seus sonhados 3,5%.
25.Se tomarmos como referência o Índice de Custo de Vida (ICV) para a cidade de São Paulo calculado pelo DIEESE, a taxa média foi de 9,55% em 2003, enquanto os “serviços públicos” (aí incluídas as tarifas das empresas privatizadas) subiram 13,45%. As tarifas telefônicas subiram mais ainda: 17,16%. Se considerarmos a evolução de dezembro de 2003 em relação a dezembro de 2002, a assinatura telefônica subiu 17,19% e o pulso, 20%. A tarifa de energia elétrica residencial (até 300 kwts) subiu 11,18% no mesmo período. Em 2004, o índice médio de crescimento do custo de vida foi de 7,7%, ao passo que as despesas de comunicação (incluindo telefonia) subiram 11,04%. A assinatura telefônica subiu 14,16% e o pulso, 16,66%. A tarifa de energia elétrica residencial avançou 10,5% (fonte DIEESE. Disponível em: http://www.dieese.org.br. Acesso: 14.03.05, 16h15m. Ver também http://www.dieese.org.br/procon/tarifas. Acesso: 17.03..05). Situação idêntica é revelada no IPCA do IBGE: em 2002, o índice médio foi de 12,58%, enquanto o de energia elétrica residencial foi de 19,88%; em 2003, enquanto o índice geral foi de 9,33%, o de energia elétrica foi de 21,31% e o de comunicação, 18,69% (Fonte: IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/hoje/estatísticas/indicadores/preços/inpc_ipca. Acesso: 28.03.2005, 18h15m).
26.Estudo feito pela consultoria Economática revelou que as cinco maiores empresas do setor de alimentos aumentaram sua fatia no faturamento total de 78,2% em 1994 para 94% em 2002; de 57% para 67,1% na indústria química; de 68,9% para 84,5% no setor de fios e tecidos; de 91% para 98,9% no de eletrodomésticos, sendo que só uma empresa, a Multibrás, aumentou seu peso de 48,2% para 59,6%. No caso da mineração, excluídos petróleo e gás, a Vale do Rio Doce aumentou sua parcela de 80,4% para 85,8%.
27.Segundo estudo do McKinsey Global Institute, as aplicações no sistema financeiro mundial atingiram US$ 118 trilhões em 2003, um montante três vezes superior ao do PIB mundial (Cf. “Aplicações financeiras são três vezes maior que PIB mundial”. Fonte: Reuters Investor. Disponível em: http://br.invertia.com./noticias/noticia.aspx. Acesso: 02.03.2005, 14h23m).
28.O estudo foi feito quando a taxa selic estava em 18,75%; com o aumento em março para 19,25%, a taxa real no Brasil subiu para 12,7%.
29.Fonte: GRC Visão. Extraído de Folha de S.Paulo, 16.03.2005, p. B7.
30.A enorme volatilidade do câmbio, como ocorreu no mês de março deste ano, quando o dólar subiu de R$ 2,59 para R$ 2,766 e depois baixou para R$ 2,668, não nega o fato de que, se tomarmos um período maior (por exemplo, os últimos seis meses, a partir do retorno do aumento da taxa de juros), a correção cambial tem sido negativa.
31.Na década de 1990, ocorreu o maior movimento de fusões e aquisições da história recente do capitalismo: o conjunto das transações para fusões subiu de US$ 138 bilhões em 1991 (2% do PIB) para US$ 957 bilhões em 1997 (12% do PIB). E foi precisamente na área financeira em que o processo de centralização do capital foi mais intenso: na principal praça financeira do mundo, os EUA, de 1996 até abril de 1998, das nove maiores fusões ocorridas, três se realizaram no setor financeiro (Cf. Souza, Nilson Araújo de. Ascensão e queda do império americano. São Paulo, Ed. CPC-UMES/Mandacaru, 2001, p. 128).
32.Folha de S.Paulo, 17.02.2005.
33.Na primeira estimativa divulgada pelo BC, o índice era de 4,06% do PIB, mas, posteriormente, com a reestimativa para cima do crescimento do PIB, a cifra baixou para 3,89%.
34.Fonte: Banco Central do Brasil.
35.Diz o documento: “A importância do ajuste fiscal de longo prazo não pode ser subestimada. Caso o governo brasileiro tivesse realizado um superávit primário de 3,5% do PIB ao ano durante os últimos oito anos, a relação dívida/PIB hoje seria a metade da observada, mantidas todas as demais condições, inclusive as políticas cambial e monetária adotadas durante o período 1995-1998” (Cf. Ministério da Fazenda. Política econômica e reformas estruturais. Brasília, abr. 2003, p. 8).
36.Usamos “investidores” entre aspas porque eles não realizam investimento algum. Investimento, no conceito keynesiano, significa canalização da poupança para o aumento da capacidade produtiva da economia. Esses a quem chamam de investidores não destinam um centavo ao aumento da capacidade produtiva; não passam de rentistas que aplicam recursos próprios ou de terceiros no mercado financeiro, sobretudo em títulos da dívida pública; o termo mais correto para designá-los é o de que o senso comum já se apropriou: especulador.
37.Ministério da Fazenda. Política econômica e reformas estruturais, cit.
38.A participação da carga tributária no PIB caiu de 35,53% em 2002 para 34,88% em 2003 (fonte: Secretaria da Receita Federal. Ver tabela 2). Essa queda se deveu, seguramente, ao encolhimento do PIB: quando entram em dificuldades, uma das primeiras atitudes das empresas é sonegar impostos.
39.Em termos reais, os investimentos do governo federal despencaram 44,39% em 2003, depois de haverem caído 35,97% no ano anterior (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Disponível em: http:/www.planejamento.gov.br. Acesso em: 16 mar. 2004. Extraído de: Dathein, Ricardo. Governo Lula: análise crítica dos resultados, das perspectivas e das alternativas às políticas econômicas adotadas, p. 2, tabela 1). Também não escaparam do facão determinados gastos na área social. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os gastos em saúde: os gastos públicos per capita com saúde, que já vinham caindo desde 1997, diminuíram de R$ 177,4 em 2002 para R$ 158,9 em 2003 (valores atualizados para dezembro de 2003), refletindo uma queda real de 10,42%. Assim, sua participação no PIB baixou de 1,92% no primeiro ano para 1,82% no segundo (Cf. Provedello, Maysa. “Fome de dinheiro”. Revista Desafios do desenvolvimento, no. 7, fev. 2005, ano 2, p. 24, tabela).
40.Fonte: Secretaria da Receita Federal, Ministério da Fazenda (ver tabela 2). Enquanto isso, estudo preliminar feito por um grupo de economistas da Unicamp, FGV e UFRJ indicou que a carga tributária aumentou de 34,8% do PIB em 2003 para 36,7% em 2004. A Unafisco, por sua vez, calculou em 36,06^% e o IBPT, em 36,74%.
41.É um conceito mais amplo, mas não necessariamente mais preciso, na medida em que, para se chegar à dívida líquida, descontam-se da dívida bruta valores que não necessariamente são ativos ou créditos do governo, como, por exemplo, as reservas cambiais, que às vezes resultam de dólares trazidos por especuladores e podem retornar a qualquer momento; em outros casos, descontam-se créditos que o governo federal detém junto a empresas, estados ou municípios, que nunca irá receber e por isso mesmo são chamados de “créditos podres”.
42.Fonte: Banco Central do Brasil.
43.Esse crescimento se deveu sobretudo à elevação da taxa selic entre fins de 2002 e começo de 2003. Em conseqüência, a participação dos juros nominais do setor público no PIB subiu de 8,47% em 2002 para 9,49% em 2003; assim, apesar do superávit primário de 4,32% do PIB nesse último ano, o déficit nominal foi de 5,16%%, exigindo a emissão de mais títulos para cobri-lo (Banco Central. Disponível em: http://www.bcb.gov.br. Acesso em: 14 mar. 2004, p. 5, tabela 2)
44.Ao contrário, ele até acelerou: cresceu R$ 32 bilhões no primeiro ano e R$ 44 bilhões no segundo.
45.Estudo feito pela Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (FUNCEX) em novembro de 2004 mostra que, diante de uma cesta de 13 moedas de outros países, em outubro daquele ano o real estava 2,1% mais alto do que em dezembro de 1998. Só ao longo de 2004 o real acumulou uma valorização de 12,6% em relação a essa cesta de moedas. E vejam que em outubro de 2004 o dólar ainda não havia chegado aos R$ 2,60 de fevereiro de 2005.
46.Em dezembro de 2002, US$ 1 custava R$ 3,53. Se fizermos incidir sobre essa taxa de câmbio a inflação brasileira (17,92% pelo IPCA) menos a inflação estadunidense (de 5,24% pelo seu IPC), a taxa deveria ser de R$ 3,98 em dezembro de 2004. No entanto, chegamos neste começo de ano a R$ 2,60 – portanto, uma desvalorização real do dólar em 34,5%.
47.O déficit comercial dos EUA em 2004 atingiu a cifra recorde de US$ 617,7 bilhões, superior em 24,4% ao déficit registrado em 2003 (cf. “Déficit comercial dos EUA atinge recorde de US$ 617,7 bi em 2004”. In Folha Online – Dinheiro. Acesso: 10/02/2005, 12h29m).
48.Cf. Cardoso, Cíntia. “Real é moeda com a maior volatilidade mundial”. In Folha de S.Paulo, 11.02.2005, p. B5.
49.Cf. UOL. “Relatório do FMI elogia avanços econômicos do Brasil”. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultinot. Acesso: 25.03.2005, 18hl9m.
50.Em 1997, um ano antes do estouro do Real, as importações haviam alcançado U$ 61,35 bilhões, maior nível atingido até então (Fonte: Banco Central do Brasil).
51.Ibid.
52.Na opinião do economista da Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior (FUNCEX), Fernando Ribeiro, o impacto da valorização do real sobre as exportações é retardado, na medida em que a maioria das empresas fecha contratos com prazos de seis meses a dois anos, utilizando uma cotação do dólar preestabelecida – no caso recente do Brasil, mais elevada do que a atual. É importante registrar que a aceleração da valorização do real ocorreu, como vimos na tabela anterior, a partir de setembro de 2004 – portanto, seus efeitos ainda não se fizeram sentir nas vendas externas.
53.Pela mudança de metodologia, o IBGE não possui dados comparáveis para o conjunto de cada um desses anos.
54.Por sua vez, o poder de compra dos assalariados caiu 4,8% (Fonte: SEP. Convênio SEADE-DIEESE. Pesquisa de Emprego e Desemprego. Disponível em: http://www.seade.gov.br/cig-bin. Acesso: 14.03.2005).
55.Que, como vimos, têm sido, em sua maioria, arrematados pela própria Petrobrás.
56.Não que a área econômica do governo não queira fazê-lo. Se dependesse dela, essa política teria continuado. Demonstração disso é o documento do Ministério da Fazenda sobre “reformas microeconômicas”, expedido ao final de dezembro de 2004 (Ministério da Fazenda. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília, dez. 2004), no qual propõe privativar o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Logo depois, em janeiro, o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, aproveitou o Fórum Econômico Mundial, em Davos, para oferecer o IRB aos financistas internacionais.
57.Fonte: FGV. Conjuntura Econômica.
58.Fonte: IBGE.
59.A taxa de rentabilidade sobre o patrimônio das 500 maiores empresas subiu de 3,2% em 2002 (Cf. “Melhores e maiores”, revista Exame, 2003) para 12,4% em 2003 (Cf. “Melhores e maiores”, revista Exame, 2004).
60.Referimo-nos à demanda interna. Segundo o IBGE, o consumo das famílias caiu 3,3% em termos reais em 2003 e as vendas no comércio varejista, 3,68% (terceiro ano consecutivo de queda). Até o consumo de alimentos, que costuma ser o último a cair, reduziu-se em 4% de outubro de 2002 a outubro de 2003
61.O montante devido dos juros aumentou de R$ 114 bilhões em 2002 para R$ 145,2 bilhões em 2003 (Fonte: Banco Central do Brasil).
62.Ver nota 39.
63.Fonte: IBGE. Há cálculos que indicam uma taxa menor ainda: 17,1% (Cf. Dathein, Ricardo, op. cit., p. 2, tabela 1). O próprio IBGE chegou a estimar uma taxa de 17,8%.
64.Fonte: IBGE.
65.Fonte: SEADE/DIEESE.
66.Fonte: IBGE.
67.Ver Ministério da Fazenda. Política econômica e reformas estruturais. Brasília, abr. 2003.
68.Cf. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Plano Brasil de todos: participação e inclusão. Brasília, mai. 2003. Recorde-se que, apesar dessa postura formalmente distinta da que defendia a equipe do Ministério da Fazenda, a equipe do Ministério do Planejamento terminou, na prática, moldando-se à visão da Fazenda.
69.Estamos, obviamente, nos referindo aos aspectos monetário, fiscal e cambial da política macroeconômica e às chamadas reformas estruturais. Já vimos que, em questões também estruturais, como a política de comércio exterior (derivada da política externa) e a política relativa às estatais, houve importantes mudanças.
70.IBGE. Pesquisa industrial mensal – produção física – Brasil. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia. Acesso: 10.01.05.
71.Fonte: FIESP.
72.A produção agrícola sofreu queda no ano: a safra de grãos, prejudicada por intempéries no sul, caiu 3,68%, passando de 123,63 milhões de toneladas para 119,10 (IBGE). Ainda assim, o valor real da produção do conjunto da agropecuária subiu 5,3% no ano, em grande medida alavancado pela melhoria dos preços internacionais dos produtos básicos (Cf. “PIB cresce 5,2% em 2004, melhor taxa em uma década”. Uol – Última Notícias. Disponível em:: http://notícias.uol.com.br/economia/ultnot/reuters. Acesso: 01.03.2005, 10h38m).
73.Cf. “PIB cresce 5,2% em 2004, melhor taxa em uma década”. In: UOL – Últimas Notícias. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/economia/ultinot/reuters. Acesso: 01.03.2005, 10h38m.
74.Depois do pico de 1999, havia caído em 2000, bafejado por um efêmero crescimento do PIB.
75.IBGE. “Pesquisa industrial mensal de emprego e salário”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia. Acesso: 17.01.2005, p. 1. Apesar de baixo, esse foi o maior crescimento do emprego industrial desde 1989.
76.De 1930 a 1980, foi a economia que mais cresceu no mundo capitalista, a uma taxa média anual em torno de 7%, sendo que, nos momentos de expansão acelerada, experimentou taxas anuais acima de 10%.
77.A média anual de crescimento do PIB na década de 80 foi de 2,9% e na de 90, 1,9%; se considerarmos os últimos 10 anos, incluindo 2004, a taxa foi de 2,4% (cf. “PIB cresce 5,2%…”).
78.Isso não significa iludir-se com crescimento sem crise na economia capitalista, mas analisar se ocorrerá de forma completa a primeira fase do ciclo capitalista: reanimação, aceleração e auge. Isso só ocorre quando, esgotada a capacidade ociosa gerada durante a crise, o PIB segue crescendo, e o PIB só continua crescendo nessas circunstâncias quando durante a fase de reanimação (ou recuperação) começam a ser realizados os investimentos indispensáveis ao aumento da capacidade produtiva.
79.Fonte: IBGE.
80.Fonte: Banco Central.
81.Fonte: FIESP.
82.IBGE. Pesquisa industrial mensal – produção física – Brasil, cit., p. 3.
83.Ibid.
84.Fonte: IBGE.
85.Fonte: SEADE/DIEESE.
86.Uma outra pesquisa da CNI, adotando outro critério, indicava um nível de 16,9% de capacidade ociosa no fechamento do ano (cf. “Emprego e vendas da indústria quebram recorde histórico”. In Reuters Investor. Disponível em: http://www.br.invertia.com.. Acesso: 12.02.2005).
87.Fonte: SERASA.
88.De acordo com levantamento do FMI, as exportações mundiais, que haviam caído 4,2% em 2001 e crescido 4,5% em 2002, subiram 16,5% em 2003, com previsão (feita em setembro de 2004) de crescimento de 18,3% em 2004 (Cf. MDIC. “Evolução do comércio exterior brasileiro – 1950 a 2005 (janeiro)”. Dados elaborados por SECEX/DEPLA/MDIC. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br./arquivo/secex/evocoxtbrasil. Acesso: 21.01.2005, 10h15m).
89.Ministério da Fazenda. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília, dez. 2004, p. 21.
90.Cf. ”Emprego e vendas na indústria….
91.IBGE. Pesquisa industrial mensal de emprego e salário. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia. Acesso: 17.01.2005, p. 4.
92.Fonte: IBGE. Pelo levantamento da CNI, o emprego industrial cresceu 3,49% no ano (Fonte: CNI).
93.Cf. “Brasileiro compra mais, e comércio cresce pela 1ª vez no século”. Fonte: Investnews. Disponível em: http:/www.br.invertia.com./noticias/noticia. Acesso: 17.02.2005, 10h09m
94.Fonte: FECOMÉRCIO.
95.IBGE. Pesquisa industrial mensal – produção física – Brasil. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia. Acesso: 10.01.2005, p. 1.
96.Cf. “Brasileiro compra mais…”, p. 1.
97.Levantamento realizado pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), com base em dados coletados pelo IBGE (Cf. Brandão Junior, Nilson. “Setores que mais empregam não registram aumento de contratações”. O Estado de S.Paulo, 27.02.2005, p. B1)
98.Considerando os 11 primeiros meses do ano, o crescimento das vendas no comércio varejista de eletrodomésticos no país foi de 22,4% (IBGE), tendo sido de 18% na região metropolitana de São Paulo para o conjunto do ano; se levarmos em conta o setor de eletrodomésticos e móveis, o crescimento das vendas, conforme apurado pelo IBGE, foi de 26,37% no conjunto do ano e o de veículos, 17,8% (Cf. “Brasileiro compra mais…”).
99.Vimos que a produção de automóveis e de bens de capital, que também dependem de financiamento, teve um crescimento bastante elevado, mas parte significativa desse aumento destinou-se ao mercado externo (cf. IBGE. Política industrial mensal…., cit., p. 3).
100.Os prazos usuais, que antes eram de 6 meses, aumentaram para 12 e já chegam a 18 meses.
101.De acordo com levantamento da ANEFAC, em janeiro de 2004, a taxa média mensal dos juros no crediário era de 6,16%, a partir de quando começou a baixar até atingir 6% em setembro; daí em diante, voltou a subir até alcançar 6,06% em dezembro de 2004 e 6,10% em fevereiro de 2005, quando indicou um acumulado em 12 meses de 103,51%, o maior índice nos últimos dois meses (Fonte: ANEFAC – Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade. Disponível em: http://www.anefac.com.br. Acesso: 13.03.2005, 13h30m). O levantamento do PROCON-SP indica a mesma tendência: a taxa mensal de juros no empréstimo pessoal inaugurou janeiro de 2004 em 5,37% mensais, tendo caído para 5,14% em setembro; cresceu daí em diante, até atingir 5,22% em dezembro (Fonte: PROCON-SP. Extraído de Folha Online Dinheiro. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro. Acesso: 28.12.04, 13h07m).
102.Em 2004, houve um crescimento nominal de 21% no volume de crédito ao consumidor (fonte: Banco Central. Cf. Travaglini, Fernando. “Juro alto estanca o volume de crédito”. DCI, 17.02.2005, p. A-13). Deflacionado pelo IPCA, isso significa um aumento real de 12,4%.
103.IBGE. Pesquisa Mensal de Emprego.
104.Segundo a equipe da Fazenda, “a política de equilíbrio fiscal [que, na sua visão, é o eixo de sua política macroeconômica] foi fundamental não apenas para a forte retomada da atividade econômica como também é uma das condições necessárias para que o Brasil inicie uma trajetória sustentável de crescimento de longo prazo” (cf. Ministério da Fazenda. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília, dez. 2004, p. 22).
105.No montante de US$ 18,66 bilhões (fonte: Banco Central)
106.No total de US$ 5,2 bilhões (Ibid.). As transações correntes apresentaram um saldo positivo de US$ 4 bilhões porque contaram com um superávit de US$ 2,87 bilhões nas transferências unilaterais (Ibid.).
107.“Projeções macroeconômicas em foco, 13.01.2005”. Fonte: BACEN/IBGE. Elaboração: GRC-Visão. Disponível em: http://www.globalinvest.com.br./relatórios. Acesso: 22.02.2005, 12h40m. O BC, ao decidir excluir da dívida externa US$ 18,8 bilhões, que correspondiam ao montante dos empréstimos intra-empresas (estrangeiras) em dezembro de 2004 e que passaram a ser “enquadrados” como investimento direto estrangeiro, considera que a dívida externa baixou de US$ 214,9 bilhões para US$ 201,4 bilhões, numa redução de US$ 13,5 bilhões (Fonte: Invertia. “Dívida externa cai e fecha 2004 em US$ 201 bilhões”. Disponível em: http://br.invertia.com/noticias/noticia. Acesso: 21.03.2005, 13h32m).
108.Em fevereiro de 2005, a conta de capital e financeira do balanço de pagamentos apresentou saldo positivo de US$ 4,4 bilhões, praticamente dobrando a entrada do mês anterior.
109.Fonte: Banco Central.
110.Em 31 de dezembro de 2005, as reservas totais, estavam em US$ 52,9 bilhões, o que, descontando a parte do FMI, davam um montante de US$ 27,5 bilhões de reservas líquidas, suficientes para cobrir apenas 5,5 meses de importação, ao nível de 2004. A aceleração das compras de dólares no começo de 2005 ajudou a fortalecer as reservas cambiais, levando as reservas totais para US$ 59 bilhões no final de fevereiro e as líquidas para US$ 31,4 bilhões. Houve um aumento de seu valor absoluto, mas, se considerarmos agora o nível das compras externas projetadas (MDIC) para 2005, verificaremos que esse nível de reserva só garante 4,5 meses de importações. Lembremo-nos de que as reservas chinesas bancam mais de um ano de importações. Cabe o registro de que, como esse aumento das reservas brasileiras não foi obtido através dos saldos da balança comercial – os quais foram usados para pagar os encargos do passivo externo -, mas da compra de dólares junto a especuladores, em nada contribui para diminuir a vulnerabilidade externa, pois, se os especuladores decidirem ir embora, voltam a trocar reais por dólares e a debandar com as reservas cambiais (Fonte: Banco Central).
111.Cf. Folha Online – Dinheiro, acesso em 03.02.2005, 09h20m.
112.O próprio IPEA, órgão de pesquisa do Ministério do Planejamento, em sua previsão de março de 2005, projetou um crescimento de 10,2% das exportações neste ano, contra 32% em 2004. Sua previsão para o valor médio do dólar no ano é de R$ 2,71 (Cf. “Ipea reduz a 3,5% previsão de alta do PIB”. Cf. Folha de S.Paulo, 09.03.2005, p. B1).
113.Fonte: Confederação Nacional da Indústria (CNI).
114.Cf. Folha de S.Paulo, 02.02.2005, p. B3.
115.Cardoso, Cíntia. “Real é moeda…..”, cit., p. B5.
116.Ibid. Fonte: FIESP, com dados do FMI.
117.Ministério da Fazenda. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília, dez. 2004, p. 22.
118.Em outra pesquisa, usando outra metodologia, a mesma CNI mostra que o uso da capacidade instalada do conjunto da indústria fechou o ano de 2004 em 83,1% (Cf. “Emprego e vendas…”, cit.), havendo sido de 80,8% na média do ano (Cf. “Juro alto reduz atividade industrial, diz CNI”. Folha de S.Paulo, 09.03.2005, p. B3).
119.Cf. IBGE. Pesquisa industrial…, cit., p. 1
120.Ibid
121.Fonte: IEDI, com base em dados do IBGE.
122.Fonte: CNI.
123.Ibid.
124.Ibid.
125.“Atividade industrial avança no ano e recua no mês”. Disponível em: http://br.invertia.com/noticias/noticia. Acesso: 25.02.2005, 11h44m.
126.Fonte: DIEESE/SEADE. “Desemprego e renda recuam em janeiro em SP”. Disponível em:: http://notícias.uol.com.br/economia/ultnot/reuters Acesso: 23.02.2005, 12h11m.
127.Fonte: DIEESE/SEADE.
128.Cf. “PIB cresce 5,2%…”.
129.Cf. Folha Online – Dinheiro, acesso em 14.01.2005, 10h26m.
130.Cf. IBGE. “Pesquisa Industrial Mensal de Emprego e Salário”. Disponível em: http;//www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia. Acesso: 17.02.2005.
131.Cf. Futema, Fabiana. “ABC e interior puxam alta do emprego industrial em São Paulo”. In Folha de S.Paulo, 11.02.2005, p. B3.
132.Cf. “Ipea reduz a 3,5% previsão de alta do PIB”. Folha de S.Paulo, 09.03.2005, p. B1.

Nota do Editor
Na próxima edição, estará disponível a parte final deste ensaio.

Caminhos da humanidade...

A Democracia Compulsória

A história das idéias políticas ou a formulação do pensamento político desde os tempos mais remotos teve por um de seus eixos centrais a questão da forma de governo. A melhor forma de governo, é aquela suscetível de realizar o bem-estar e a felicidade do homem e ser garantidora da igualdade – sem o que liberdade nenhuma subsiste -, da justiça e da paz. Em torno desse eixo muitos outros temas gravitaram e outras vezes se altercaram, desde os mais abstratos até aqueles que guardam referência concreta com o desenrolar desse carretel de muitas pontas que constitui a vida cotidiana.
Ao longo do tempo, diferentes povos e nações experimentaram os mais variados regimes e formas de governo e não se pode afirmar com segurança que tenham vivido em plenitude a liberdade; muitos, sequer viram-na despontar no horizonte nebuloso da política e da História. Algum grau de servidão humana parece ter atravessado todos os tempos e regimes e logrado submeter os homens e sociedades inteiras, por períodos mais ou menos longos.
É pois, natural, que aqueles que se ocuparam dos assuntos humanos e fizeram incidir o olhar e a atenção sobre a política e sobre o curso tortuoso da História, tenham muitas vezes oscilado do ceticismo ao entusiasmo em relação às formas de governo e regimes concebidos pelo homem, entre eles a democracia e a ditadura nas suas mais variadas formas. Por certo contemplaram as promessas da revolução como possibilidade histórica e terão se defrontado também com uma realidade diferente em tudo da esperança.
As cidades da Hélade, de modo particular Atenas, foram tomadas por berço e símbolo de uma democracia que, jamais logrou ser absoluta e o exercício da tirania era também uma possibilidade que não se chegou a excluir das cogitações. (1) O fato de Sócrates ter sido condenado permite supor que ele teria sido uma voz discrepante e seu discípulo Platão pode ter encontrado nele o fundamento e inspiração para suas concepções aristocráticas. E, antes deles, Homero, na Ilíada, passando por ventríloquo de Ulisses proclamara que “muita gente a mandar não me parece bem; um só chefe, um só rei, é o que mais nos convém.” (2) Por outras palavras, ter mais que um chefe, ainda que ungidos pelo voto, significava-lhe ser multiplamente infeliz, melhor ainda, ver sua desdita ser multiplicada pelo número de homens a que deveria servir e cuja autoridade deveria acatar.
Sabe-se que idéias e formas de governo não surgem aleatoriamente na cabeça deste ou daquele pensador ou líder político, antes, decorrem da realidade concreta, desse chão poroso da História, ajustam-se às circunstâncias e ao caráter de uma cultura e raramente se esgotam em uma única alternativa totalizante e hegemônica.
No caso de Atenas, que se tem por nascedouro das idéias democráticas, mais que da democracia propriamente dita, a construção de uma estrutura política democrática fora acompanhada e estimulada por transformações de ordem econômica e social lá ocorridas, conformou-se em torno de eixos básicos de reflexão que encontravam guarida na vida cotidiana dos atenienses, tais como a idéia de democracia, de igualdade, uma concepção de liberdade e a prevalência da lei, ainda que esta pudesse ser reformulada. Ressalte-se, entretanto, que, se de um lado, a cidade liberava o cidadão emancipando-o dos laços de sujeição a homens e grupos, de outra parte, impunha-lhe a sujeição à lei. (3)
O apogeu da democracia ateniense, sob o governo de Péricles, esteve, entretanto, bastante longe de obter a unanimidade que hoje cerca o conceito de democracia, do que terá sido exemplo a crítica, revestida de fina ironia, presente na obra de Aristófanes (444-385 a.C.), de todo refratário à demagogia e às inovações que abalavam os valores tradicionais e um crítico contumaz da depravação dos costumes políticos. (4)
De igual modo, Xenofonte (425-355 a.C.) investira contra a democracia ateniense que lhe parecia maculada pela divisão, indisciplina e incompetência, preferindo apostar no governo de um só homem. E Platão (428-347 a.C.) inclinara-se favoravelmente a um regime de perfil aristocrático, embora não contivesse a revolta em face dos excessos cometidos pelos tiranos, o que o levou a optar pela reflexão teórica em detrimento da militância política, refugiando-se na filosofia. Aristóteles (384-322 a.C.) chagara a conceber a democracia moderadamente com a constituição alicerçada na classe média e procurando aproximar os princípios democráticos e aristocráticos.
Como se pode ver, a idéia de democracia na Grécia Antiga, de modo muito particular em Atenas, não escapou ao crivo da crítica. “A Antigüidade – observa Bouthoul – já acariciava a esperança de um governo de sábios escolhidos pela sua erudição e pelas suas virtudes. Entretanto, a experiência mostrou que os sábios, ingressando na política, não se furtavam às servidões e aos problemas de seus colegas.” (5) Erudição e virtude é tudo o que não se pode esperar da grande maioria daqueles que hoje postulam os cargos públicos e pedem o nosso voto e é também bastante conhecido o modo como, uma vez eleitos se deixam enredar nas malhas da atividade parlamentar.
A renascença européia retomou os liames com a antigüidade clássica, e o lampejante gênio político de Nicolau Machiavelli (1486-1527) concebera a democracia, aparando-a moderadamente nos marcos do republicanismo, ainda que sua obsessão pela unidade política da Itália o tenha levado a depositar todas as esperanças na ação providencial de um Príncipe, favorecido pela virtú e pela fortuna. Em outras obras que não O PRINCIPE, Machiavelli mostrara-se republicano e amigo do povo e a república romana, no seu período florescente, se lhe configurava como a forma ideal do Estado. Favorável à liberdade de pensamento, posto que amante das discussões e tertúlias da vida política, julgava que uma abertura democrática podia ser boa e desejável, mas sem excluir, entretanto, a possibilidade de uma ditadura diante de situações de caráter extraordinário e por um período delimitado. (6) Fica bem claro em Machiavelli que um governo, uma autoridade ou um regime político responderá perante a História, não pelo fato de ter lançado mão deste ou daquele instrumento, mas pela resposta concreta e eficaz que lograr articular ao repto que o tempo e a circunstância lhe faz. O bem que a unidade política da Itália representava justificava por si só os males que a utilização deste ou daquele meio pudesse significar. Quatro séculos depois, na mesma Itália já unificada, outro notável pensador, Antônio Gramsci (1891-1937) atribuiria ao partido político, o papel de Novo Príncipe.
Etiénne de La Boétie (1530-1563), no seu DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, inquietava-se menos pela rebeldia ocasional dos homens do que pela sua tendência dominante de se submeter ao poder dos tiranos e às leis iníquas, vinculando essa subserviência a uma moléstia coletiva de caráter epidêmico, um vício incurável que acometia os homens sob os sistemas autoritários, notadamente aqueles originários da civilização judaico-cristã.
A atualidade aguda dessa crítica sobrevive aos sistemas autoritários se considerarmos as estruturas coercitivas em que se apoiam, em grau maior ou menor, as democracias modernas, de tal forma que a liberdade de que se julgam e proclamam fiadoras e garantidoras não ultrapassa os limites que o poder estabelece e consente a ponto de se tornar – aqui e agora – uma referência fundamental de caráter único sob a égide do politicamente correto, em função do que se exclui da pauta de discussões qualquer alternativa que ultrapasse os limites da democracia representativa liberal, na mesma medida em que se elabora e repete até a exaustão um conceito de liberdade contido nos marcos do liberalismo e da globalização, que se esgota na formulação de opções que não ajudamos a formular e que a razão, tanto quanto o sentimento, repelem.
No século XVIII, Montesquieu (1689-1755), ao formular o conceito de lei como relações necessárias que derivam da natureza das coisas, rompe com o vínculo da política com a teologia e procura encontrar constâncias na variação dos comportamentos e formas de organizar a vida dos homens e julga possível estabelecer leis que regulam as relações entre eles. Fica bastante claro para o autor d’O ESPÍRITO DAS LEIS que o estado de sociedade comporta uma grande variedade de formas de realização e organização que se ajustam a uma grande diversidade de povos. Assim, pode-se concluir que a estabilidade de um regime ideal – república, monarquia ou despotismo – implica numa correlação entre as forças reais da sociedade que acaba encontrando expressão e forma nas instituições políticas.
Quando toma por objeto a democracia, Montesquieu ressalta que se um governo é monárquico ou despótico, o primeiro, pela força das leis, o segundo pelo braço do príncipe, num Estado que se pensa democrático e popular, é preciso antes de tudo a virtude, pelo que se entende um sentimento, mais que uma série de conhecimentos. “O amor à igualdade, numa democracia, limita a ambição apenas ao desejo, apenas à felicidade de prestar à pátria maiores serviços que os demais cidadãos. Estes não lhe podem prestar iguais serviços; mas todos devem prestar-lhe algum.” (7)
O mesmo Montesquieu ressalva entretanto, que a corrupção de cada governo começa freqüentemente pela dos princípios e acrescenta: “O princípio da democracia se corrompe, não só quando se perde o espírito de igualdade, mas também quando se assume o espírito de igualdade extrema, e cada um quer ser igual aos que escolheu para comandá-lo.” (8) Assim, não sobreviverá a virtude na República quando o povo, não podendo já suportar o poder em quem confia, deseja fazer tudo por si só, assumindo as funções dos magistrados e dos senadores. “O povo cai nessa infelicidade, quando aqueles em quem confia, querendo esconder a própria corrupção, procuram corrompê-lo. (…) Não será para admirar verem-se votos dados por dinheiro. Não se pode dar muito ao povo, sem que mais dele se extraia; mas para extrair dele, é preciso subverter o Estado. Quando mais pareça que tira vantagem da liberdade, mais o povo se aproximará do momento de perdê-la. Ele forma pequenos tiranos com todos os vícios de um só tirano. Cedo se tornará insuportável o que resta da liberdade; surge um único tirano; e o povo perde tudo, até mesmo as vantagens de sua corrupção.” (9)
Conclui Montesquieu que a democracia, se quer sobreviver, deve evitar o espírito de desigualdade e o espírito de igualdade extrema, posto que o primeiro conduz à aristocracia, ao governo de um só e o segundo, leva ao despotismo de um só. Sensível e apegado à diversidade do mundo, a acuidade desse conservador iluminado ou iluminista moderado, próximo de John Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, distingue os governos segundo as épocas e países, considera as fraquezas humanas valendo-se de um método que se apoia numa análise sociológica. Não incidiu e jamais cairia na esparrela de considerar que uma única forma de governo ou um único regime atende às especificidades de todas as sociedades em todas as épocas e condições.
O pensamento de origem anarquista, pela voz de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), identifica na comunidade a origem da opressão e servidão na medida em que limita a espontaneidade do espírito, o livre arbítrio na ação e no pensamento e destitui a pessoa humana de suas prerrogativas, mas, ao mesmo tempo, não deixa de revelar um acentuado ceticismo quando o escrutínio de que resulta um número, uma maioria, toma o lugar da tradição e da hereditariedade. Céptico da necessidade de tantos mandatários e representantes e da eficácia dos pleitos eleitorais, preferia acreditar que a liberdade, mais do que a expressão fria e abstrata da lei, se inscrevia nas entranhas e interstícios da vida cotidiana. “Não acredito – dizia ele – de maneira alguma, justificadamente, nesta intuição divinatória da multidão, que a faria discernir, logo de imediato, o mérito e a honorabilidade dos candidatos. Os exemplos são abundantes em personagens eleitos por aclamação e que, sobre as bandeiras em que se ofereciam aos olhos do povo arrebatado, já preparavam a trama de suas traições.” (10)
De modo particularmente acentuado no pós-guerra, a vitória dos países aliados contra as forças do eixo, tomou a forma de uma vitória da liberdade e da democracia e, por extensão de um determinado modo de vida. A idéia de democracia passou então por todas as mãos e vertentes ideológicas e, superada a Guerra Fria parte de uma esquerda claudicante e já desarvorada terá sucumbido ao fetiche que a palavra exerce, proclamando-a como valor universal a que nenhum povo, nenhum país, independente do seu grau de desenvolvimento e de sua cultura poderá se eximir de praticar, pelo exercício periódico do voto e pela alternância dos partidos no governo.
Sucumbiu-se assim a uma idéia monopolizadora que terá servido de biombo para todos os tipos de manipulações e distorções. Os finados regimes burocráticos do leste europeu nunca deixaram de se proclamar repúblicas populares e democráticas, máscara que logrou sobreviver à revolução húngara de 1956 e à Primavera de Praga (1968), mas que caiu por terra com a queda do muro de Berlim e com a débâcle da União Soviética. Uma infinidade de golpes desfechados em todos os países da América Latina e África, aos quais se seguiram ditaduras sangrentas, foram desfechados sob o pretexto de defender a liberdade. E também em nome da democracia, pois não se podia conceber que qualquer outro país viesse optar por outro sistema que não o democrático-representativo, de extração liberal, o governo norte-americano – desembaraçado de qualquer escrúpulo – levou a cabo sua política intervencionista, ajudando a depor governos não confiáveis, apoiando ditaduras militares municiando-as de sofisticados instrumentos de informação e tortura e/ou impondo a realização de eleições neste ou naquele país, como forma de encobrir seu domínio sub-reptício.
A emergência dos Estados Unidos da América como potência hegemônica e poder incontrastável tornou, enfim, uma temeridade investir contra os poderes democraticamente constituídos, submetê-los a uma crítica devastadora, expor suas mazelas e desnudar os partidos políticos, pois deve, antes de tudo, prevalecer a premissa de que são essenciais à fluição da liberdade, à alternância no governo e suposto apanágio das garantias individuais.
Repete-se à exaustão, não se sabe se por hábito ou por absoluta falta de repertório ou de imaginação, e com o evidente propósito de excluir do debate qualquer outra alternativa, a velha fórmula de Churchill, segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, excetuando-se todas as outras. E assim, por inércia, por falta de coragem cívica ou vigor intelectual, sucumbimos à mesmice e conformamo-nos com aquele sistema que se nos afigura o menos pior, dos males o menor, ainda que a um custo elevado que temos de pagar para manter instituições que se revelam cada vez mais impróprias e incapazes – pela estrutura e pela composição – para articular respostas aos grandes problemas que assaltam e comovem a sociedade contemporânea. Está-se a pensar, naturalmente, nas câmaras municipais, assembléias estaduais e nas casas do Legislativo Federal e nos próprios partidos políticos que nelas têm assento e representação. Em defesa dessas instituições, muitas vozes levantarão o argumento de que o remédio está nas mãos dos eleitores, aos quais caberia escolher melhor seus governantes e representantes em todos os níveis. O voto é a arma que colocam em nossas mãos! Devemos então comparecer às urnas, cumprir o dever cívico e escolher aqueles que vão tripudiar sobre nós nos próximos quatro anos!
Marx observa que “assim como na vida privada se faz a distinção entre aquilo que um homem pensa de si próprio e aquilo que realmente é e faz, assim, também, nas lutas históricas se deve fazer ainda melhor a distinção entre a fraseologia e as pretensões dos partidos, a sua constituição e os seus interesses, entre aquilo que eles julgam ser e aquilo que na realidade são.” (11)
A (re)leitura do 18 brumário de Luís Bonaparte tem o poder de despertar nossa consciência para a realidade dos fatos e para a falácia desses mecanismos, uma roda dentada de que não logramos escapar, uma rede insidiosa que tolhe cada movimento e torna inútil cada manifestação e que a todos exaure “pela constante repetição das mesmas tensões e dos mesmos relaxamentos; antagonismos que parecem agudizar-se periodicamente por si próprios apenas para se poderem enfraquecer e desaparecer sem se resolverem…” (12)
Quando o temor de passar por inimigo das liberdades públicas inibe a crítica às instituições supostamente asseguradoras da liberdade e do bem-estar geral, fecham-se as portas para o exercício da imaginação política. A palavra de ordem brandida aos quatro ventos, uma variante da ordem do dia militar, assim como a propaganda oficial largamente difundida pela mídia, atrofia-nos o pensamento e deslustra-nos o espírito. Da mesma forma, a militância político-partidária, em função das teias de lealdade e cumplicidade com que nos envolve, inibe a crítica, ora em nome da disciplina, ora em nome do mais degradante fisiologismo. E a democracia, que, supostamente, deveria resultar da livre e soberana decisão, da vontade e da vocação de um povo, torna-se compulsória. É o regime a que todos devem se submeter sem discussão!
Se no mundo romano eram bárbaros os povos que não falavam latim e habitavam fora das fronteiras do Império, hoje, em plena Era Bush, passam por bárbaros os povos que não adotam o figurino democrático e não se submetem ao rito eleitoral. Os Estados Unidos outorgaram a si próprios uma missão civilizatória ocidentalizante e, finda a Guerra Fria, já desembaraçados de qualquer poder dissuasório, fazem-se passar por guardiões da democracia e assumem a zeladoria do planeta.
Machiavelli compreendera melhor que ninguém que o uso da força está sempre presente nos horizontes da vida política; é uma possibilidade que não se pode descartar, mas, com certeza, jamais teria imaginado que ela pudesse ser usada para impor a democracia a povos cuja cultura e história aponta para outras soluções.
A justíssima ênfase que se dá aos crimes de lesa-humanidade perpetrados pelos regimes totalitários ou até em nome da religião, dos quais a história oferece substanciosos relatos é mais que necessária, mas acabam por elidir os crimes e enormidades morais que também jamais deixaram de vicejar sob regimes supostamente democráticos, ou democráticos na forma estereotipada mais do que no espírito e na prática concreta, e que aparecem freqüentemente aditivados de um aparelho repressivo e ideológico de que nenhum governo parece abrir mão e de uma máquina de propaganda de alcance midiático, com extraordinário poder de corromper, manipular consciências e despertar nas mentes e corações expectativas de mudança que se desmancham nos primeiros atos do governo, caracterizando-se um verdadeiro estelionato eleitoral. Quando isso ocorre, o que se toma por democracia, mais se assemelha a uma afronta, a um consórcio ou conúbio indecente que reúne grupos em torno de interesses na mesma medida em que os afasta do povo que pretendem ou simulam representar.
Por conseguinte, se é compreensível que se clame por democracia e liberdade de expressão quando a ditadura e o autoritarismo, seja qual for a coloração, nos inibe e constrange e submete a sociedade ao arbítrio de um homem, aos apetites insaciáveis de um grupo ou ao espírito de corpo de um partido, é igualmente compreensível e defensável o desencanto, seguido de revolta e indignação que a corrupção que grassa nas democracias, como grassara também nas ditaduras, provoca.
É perceptível o desencanto e o ceticismo da maioria da população e sobejamente conhecida sua crescente inapetência em relação à política, particularmente à política partidária, além de sua impaciência em face dos rituais eleitorais aos quais muitas vezes, em alguns países, tem de se submeter compulsoriamente, sob pena de ter de prestar contas à Justiça Eleitoral. É também fácil perceber e registrar a indiferença ou o asco com que tem de se submeter à propaganda eleitoral obrigatória veiculada pelas emissoras de rádio e televisão, muito menos para educar e esclarecer do que para confundir e obscurecer, impingindo ao eleitor produtos de qualidade no mínimo duvidosa e, o que é pior, postulantes cuja vida não sobreviveria a uma investigação policial sumária e menos ainda a uma investigação de cunho jornalístico.
Não se conclua precipitadamente, das considerações até aqui expostas, que um regime autoritário, arbitrário e policialesco, que não encontre limites na lei, seja desejável e capaz de articular soluções para os problemas que afetam a maioria da população em muitos países e em todos os continentes, afinal a liberdade é sempre necessária e muitas gerações tolhidas pela ditadura já pagaram muito mais do que seria justo que custasse pela sua falta. Schwartzenberg observa com acuidade que “uma sociedade que não possui canais que permitem medir as suas contradições, informar os governantes sobre elas, debatê-las livremente, caminha-se para o bloqueio e a esclerose”. (13)
Sabe-se que a ausência de liberdade não significa garantia de eficiência governamental e, menos ainda, a eliminação da corrupção que sempre logra enquistar-se e reproduzir-se no aparato burocrático do Estado, nos vãos obscuros das câmaras legislativas e, também, nos meandros da vida cotidiana, sempre que, em nome da sobrevivência, parcelas excluídas da população têm de optar por formas de navegação social que passam ao largo da lei, do trabalho formal. Mas daí não se pode concluir que esses mecanismos tradicionais de representação, maculados pelo descrédito e rejeição pública, sejam capazes de fazer fluir o debate, escapar do poder ardiloso dos grupos de influência e encaminhar soluções para os problemas já crônicos que atravessaram e sobreviveram a diferentes governos – democráticos ou autoritários – e a diversas legislaturas.
Há que se criar então os canais pelos quais a livre opinião possa fluir e, desembaraçada das amarras institucional e burocrática, possa produzir resultados. Defender a liberdade e a democracia não significa ser conivente e tolerante com a falcatrua, a imoralidade e o tráfico deletério que se faz entre o público e o privado. Não se subestime o fato de que a crise das crenças e costumes, valores e referências éticas predispõe ao acolhimento de soluções que passam ao largo da vida civil e das normas institucionais, tornando-se suscetível de acolher lideranças carismáticas e oportunistas ou mesmo tecer liames de lealdade para com poderes paralelos ao Estado privatizado, cujo braço flácido, nervos debilitados e falência múltipla de órgãos e valores, torna ineficaz sua ação e até repelidas suas tentativas de intervenção.
Num caso ou no outro, ou seja, tanto nos períodos de abertura política quanto nos períodos de fechamento, é importante discernir entre as palavras e as coisas, entre as intenções e os fatos, entre o pretexto que terá sido útil para desfechar um Golpe de Estado e vilipendiar as liberdades públicas, os direitos e garantias individuais, de um lado e, de outro, os programas com que um partido ou uma coligação, às vezes espúria, obteve a maioria dos sufrágios e, legitimado pelo voto nos coloca a sociedade a mercê de arrivistas da pior espécie. É assim que seqüestram-nos o voto, escamoteiam a verdade das urnas e algumas poucas décadas, algumas poucas alternâncias, bastam para mostrar que a substituição de um partido por outro não implica em mudanças substantivas na vida dos cidadãos e, menos ainda, daquela legião de homens e mulheres cujo horizonte sequer contempla a idéia e a possibilidade do exercício da cidadania. Muito cedo, os novos depositários do poder revelam-se tão vulneráveis, tíbios, cínicos e deslumbrados, quanto aqueles aos quais se opunham e contra os quais vociferavam em altos brados.
O que se deseja afirmar aqui, apoiando-se nas lições da História e na realidade que, considerada sua característica multifacética e policromática, extrapola, seguramente, os limites de toda a teoria e de todos os sistemas de governo, é que não existe um único remédio ou, por outras palavras, o remédio que num organismo produz efeitos benéficos, no outro resulta em malefícios e efeitos colaterais perniciosos. Não há povo que não tenha provado o doce e inebriante sabor da liberdade, sem antes ou depois ter experimentado o amargo, mas às vezes consentido o gosto da servidão.
Só um pensamento de todo estéril elimina outras alternativas em benefício de uma só. O pensamento que não alberga o contraditório é que é, pela sua própria natureza, antidemocrático. A reflexão que se atém ao rótulo sem verificar o conteúdo do produto, deixa-se enganar pela aparência.
Um olhar obsequioso e atento permite perceber que o que temos por democracia está (ainda) infinitamente longe de sê-lo. Quando a justiça claudica e o poder de alguns se abate sobre os fracos e indefesos ou quando sentenças judiciais são objeto de compra e venda, não se pode falar de democracia; quando uma relação incestuosa se estabelece entre os poderes constituídos ou entre o interesse público e o privado e quando o voto no Parlamento se transforma em moeda de troca, não se pode falar e tampouco pensar em democracia; quando o voto é escamoteado ou quando o exercício da cidadania fica a ele restrito, não se pode inferir que o que se tem se assemelha a democracia; quando a infidelidade partidária deturpa a representação e atraiçoa a vontade expressa nas urnas ou quando prevalece o espírito corporativo e o Parlamento legisla em causa própria, esfuma-se o ideal de democracia; quando a urdidura de alianças se faz a despeito de princípios e concepções de mundo ou se torna objeto de barganha que passa ao largo de referências éticas e de qualquer escrúpulo, o que se tem é esbulho, mais que democracia; quando um enxame de parasitas de todo apartados do interesse público e indiferentes ao destino de suas cidades se locupleta nas câmaras municipais, também não é democracia o que se tem; quando a prodigalidade no uso do dinheiro público pelas autoridades constituídas tem por contrapartida a parcimônia nos investimentos em saúde, infra-estrutura, educação e pesquisa, o que se tem é plutocracia mais que democracia; quando a definição de um modelo ou política de desenvolvimento não tem por premissa a participação de todos nos frutos do crescimento ao mesmo tempo em que desconsidera o valor da natureza, as inclinações do povo e o valor da cultura, o que se tem não é nem remotamente democracia; quando se estimula o individualismo exacerbado em detrimento das atitudes e valores congregantes que favorecem a ação comum e solidária, o que se faz é solapar na base a possibilidade de uma democracia compartilhada; quando em nome do combate ao terrorismo se promove a beligerância e, em nome da segurança se limitam as garantias individuais, também não é democracia o que se tem.
Todo o governo, seja qual for o formato pelo qual se apresenta ou as origens nas quais se estriba é corruptível e detém nas mãos de seus depositários ou usurpadores uma enorme capacidade de constranger seus súditos, alguns invocando a herança dinástica, outros legitimação plebiscitária, outros apoiando-se em discutíveis razões de Estado ou em maiorias obtidas através do processo eleitoral e outros ainda através de coup de main. Se é verdade que o poder absoluto e discricionário corrompe absolutamente, o poder que se obtém pelo voto, corrompe ampla e democraticamente também, afinal, o que um postulante a um cargo público não faz para se eleger?!
Os fatos estão aí para demonstrar que os povos imolam-se na luta pela liberdade e pela democracia da mesma forma que sucumbem ao fascínio de um chefe carismático e populista; clamam pela liberdade quando dela são privados total ou parcialmente da mesma forma que clamam por ordem e autoridade, quando a liberdade e a democracia servem de biombo escuso para os favorecimentos de uma classe política que se aloja nas instituições representativas ou na burocracia estatal, em cargos mais ou menos visíveis, apegando-se aos seus cargos como crustáceos e valendo-se de um cipoal de leis que sempre guarda uma brecha para escapar da responsabilidade por seus atos e contando também, naturalmente com a dedicação de uma legião de causídicos.
O que define a natureza de um regime político e o seu grau de abertura ou fechamento é muito menos a vontade deliberada de um povo, manifestada pelo voto ou por alguma outra forma mais expontânea e menos convencional, ou o ato volitivo de um chefe, um condottieri que empalma o poder, do que pelas circunstâncias de tempo e lugar. A política, a natureza da cultura e a força das circunstâncias ou se se preferir a necessidade histórica, comporta flutuações, variações e opções não irredutíveis a um regime ou forma de governo que se pensa única e perene e menos ainda a um parecer técnico ou a uma aferição da vontade popular pela via eleitoral. “As formas que a humanidade não pára de engendrar – adverte Finkielkraut – possuem cada uma sua existência autônoma, sua necessidade imanente, sua razão singular”. (14) Os mesmos tanques e bombardeios que já lograram impor a ditadura pelo medo e pela repressão, alijando do poder, governantes livremente eleitos, hoje, ao sabor dos interesses e conveniências, afrontam as culturas dessemelhantes, estabelecem odiosos bloqueios econômicos, intervêm militarmente e depõem ditadores impondo a realização de eleições, tudo em nome da democracia e da liberdade de que se julgam guardiões vigilantes.
Mas o que é ser livre? Em que se resume a liberdade? Mais do que expressão fria e abstrata da lei, mais que redutível a uma forma de governo, a liberdade se inscreve nas estruturas e interstícios da vida cotidiana, anela-se com a vida econômica. “Ser livre – ressalta Unabomber – significa dominar (como indivíduo e como membro de um pequeno grupo social) as questões vitais da existência: a alimentação, o vestuário, o alojamento e a defesa perante as ameaças envolventes. Ser livre significa ter poder, não para dominar outras pessoas, mas para controlar as condições da nossa própria existência”. (15)
Inibidos pela odiosa patrulha do politicamente correto, deixou-se de por em discussão algumas coisas essenciais e, entre elas, os limites e a natureza dessas instituições e o próprio sentido da expressão democracia, que, esvaziada e expurgada de seu conteúdo originário, obscurecida sua origem histórica, passa a ser apenas um mecanismo de alternância periódica no governo, de partidos que nada representam, cujos programas se confundem e que se revelam de todo incapazes de suscitar qualquer esperança ou entusiasmo mobilizador. É compreensível e, até certo ponto saudável, que a grande maioria dos jovens fujam deles não sem expressar asco e repugnância. Encontrarão, por certo, algum porto mais seguro onde ancorar suas esperanças e outros meios de se expressar, outras formas de se organizar, visto que a delinqüência, a venalidade, o fisiologismo e a esclerose tornaram-se características de todos os partidos.
Um tumor que por muito tempo terá ficado delitescente no organismo político e social carece de biópsia urgente, se é que se tem ainda algum apreço pela liberdade que eles vilipendiam e pela idéia de democracia – em tudo diversa do que temos por democracia – que se deseja ainda cultivar. Não a democracia formal que se circunscreve ao ato de votar e escolher entre opções que sequer ajudamos a formular e que foram engendradas mais para excluir do que para incluir, mais para escamotear do que para revelar. Ser tolerante e conivente com as mazelas que deixam de ser exceção para ser a tônica dominante da atuação dos homens que se pensam públicos, mas que se orientam por interesses privados e corporativos, e dos partidos políticos que lhes servem de albergue, um pouco por toda a parte, é seguramente a melhor forma de abrir caminho para uma recidiva autoritária. Quantos em cada dez brasileiros sairiam às ruas para defender o parlamento, caso este fosse fechado e cercado por uma tropa tendo a frente um general? Se prevaricarmos no exercício do que ainda temos por senso de cidadania, deixando de submeter as instituições ao exame preventivo e à crítica contundente, expurgando-as da malta de salteadores e da choldra que delas se apossaram pelos caminhos mais tortuosos e métodos mais indefensáveis, não restará, por certo, alternativa outra que não proceder a autópsia da democracia e dos partidos políticos, estes já em estado terminal.

Notas.
1. O historiador Arnold Toynbee, cujo olhar atencioso incidiu poderosamente sobre a civilização helênica, identificou a vulnerabilidade das Cidades-Estado gregas no fato de que o estímulo e objetivo que conferia aos cidadãos só eram desfrutados integralmente por uma parte da comunidade, ou seja, pelos homens que tinham tempo disponível para freqüentar as praças onde os negócios públicos eram debatidos. Isso significava de de facto, embora não de jure, uma situação de inferioridade para os cidadãos agricultores, cujas terras ficavam a alguma distância do centro cívico da polis. (HELENISMO, pp. 59/62). Outro historiador, Maurice Bowra, acentua que a vida social era a autêntica base da democracia ateniense e de seus grandes ideais: a igualdade de leis e a liberdade de palavra; o povo, isto é, os homens livres, depois de 510 a.C., constituíam o poder soberano, tomavam todas as decisões políticas, formavam os jurados, exerciam cargos públicos e tinham direito de falar livremente, sem que nenhuma consideração de ordem pública os estorvassem ou inibissem. Extrapolava, por conseguinte os limites do que entendemos por democracia representativa. As leis que regiam a vida de Atenas eram publicadas e conhecidas, mas podiam ser anuladas ou modificadas por decisão do povo. Péricles afirmava que a lei é aquilo que o povo decide. Em defesa da democracia ateniense, Bowra ressalta que “entre tantas sociedades que fizeram uso da escravidão, Atenas se distinguia pela grande proporção de homens livres em relação aos escravos” mas não deixa de observar que as mulheres ficavam excluídas da vida política posto que o lar era seu lugar e o silêncio seu dever mais nobre. (Apud. CIUDADES DE DESTINO, PP. 40/47). Não obstante, cabe observar que a tragédia e a comédia gregas reservavam à mulher (Antígona, Lisístrata, entre outras) papéis especialmente significativos.
2. HOMERO – Ilíada, c. II.
3. Montesquieu retomaria essa concepção n’O ESPÍRITO DAS LEIS (1748), ao afirmar que “a liberdade política não consiste em fazer-se o que se quer. Num Estado, isto é, numa sociedade em que existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e a não ser coagido a fazer o que não se deve querer. (…) A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, ele não teria mais liberdade, porque os outros também teriam esse poder.” (Livro XII, C. III).
4. Jean Touchard – HISTÓRIA DAS IDÉIAS POLÍTICAS (Vl. 1), pp. 46/47.
5. Gaston Bouthoul – SOCIOLOGIA DA POLÍTICA, p. 137.
6. Walter Theimer – HISTÓRIA DAS IDÉIAS POLÍTICAS, C. IV, p. 95.
7. Montesquieu – O ESPÍRITO DAS LEIS, L. V, C. III.
8. Montesquieu – Idem, L. VIII, C. I/II.
9. Montesquieu – Idem, L. VIII, C. II.
10. Daniel Guérin (Org.) – PROUDHON – TEXTOS ESCOLHIDOS, p. 74. – Também Errico Malatesta (1853-1932) chama a atenção para os limites do voto ao afirmar que “o regime do sufrágio universal, mentiroso como todo o sistema parlamentar, não é de modo algum o governo da maioria – nem mesmo da maioria dos eleitores. É simplesmente um artifício com o qual o governo de uma classe ou de uma parcela, toma a aparência de governo popular”. – GRUPO ANARQUISTA 1º DE MAIO – MALATESTA – TEXTOS ESCOLHIDOS, p. 82. – A vida partidária e sindical tem sido deveras propícia ao aparecimento e ascensão de personagens medíocres e venais que valendo-se de condições e circunstâncias bastante propícias, ascendem pelo voto a cargos de alta relevância para os quais jamais se prepararam. Não são menos expressivos os exemplos daqueles que se apegam às facilidades e sinecuras que vicejam nas nervuras do poder.
11. Karl Marx – O 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE, p. 51.
12. Karl Marx – O 18 BRUMÁRIO DE LUIS BONAPARTE, p. 46.
13. Roger-Gérard Schwartzenberg – SOCIOLOGIA POLÍTICA, p. 337.
14. Alain Finkielkraut – A DERROTA DO PENSAMENTO, p. 18.
15. Unabomber (Theodore Kaczynski) – MANIFESTO DO UNABOMBER. O FUTURO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL, p. 103.

Referências bibliográficas

1. BOUTHOUL, Gaston [1976] – SOCIOLOGIA DA POLÍTICA. Lisboa: Livraria Bertrand.
2. FINKIELKRAUT, Alain [1988] – A DERROTA DO PENSAMENTO. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
3. GRAMSCI, Antonio [1980] – MAQUIAVEL, A POLÍTICA E O ESTADO MODERNO. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 4ª.ed.
4. GRUPO ANARQUISTA 1º DE MAIO [1984] – MALATESTA – TEXTOS ESCOLHIDOS. Porto Alegre: L&PM.
5. GUÉRIN, Daniel (Org.) [1983] – PROUDHON – TEXTOS ESCOLHIDOS. Porto Alegre (RS): L & PM.
6. LA BOETIE, Etienne [1986] – DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA. Lisboa: Ed. Antígona.
7. MACHIAVELLI, Nicolló [2002] – O PRÍNCIPE. S. Paulo: Ediouro.
8. MARX, Karl [1990] – O 18 BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE. S. Paulo: Ed. Mandacaru.
9. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de La Brède e de [1973] – O ESPÍRITO DAS LEIS. São Paulo: Abril Cultural.
10. SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard [1979] – SOCIOLOGIA POLÍTICA. São Paulo: Difel.
11. SKINNER, Quentin [1981] – MACHIAVELLI. London: Oxford
12. THEIMER, Walter [1970] – HISTÓRIA DAS IDÉIAS POLÍTICAS. Lisboa: Arcádia.
13. TOYNBEE, Arnold J. [1968] – CIUDADES DE DESTINO. Madrid: Aguilar.
14. TOUCHARD, Jean (Dir.) [1970] – HISTÓRIA DAS IDÉIAS POLÍTICAS (Vls. 1-4). Lisboa: Pub. Europa-América.
15. UNABOMBER (Theotore Kaczynski) [1997] – MANIFESTO DO UNABOMBER – O FUTURO DA SOCIEDADE INDUSTRIAL. Lisboa: Fenda Ed.
16. WEFFORT, Francisco C. [1989] – OS CLÁSSICOS DA POLÍTICA (1). São Paulo: Ática.
17. WOODCOCK, George (Org.) [1990] – OS GRANDES ESCRITOS ANARQUISTAS. Porto Alegre (RS): Ed. L & PM, 4ª.ed.

Evaristo Giovannetti Netto
Doutor em História e docente do
Centro Universitário Belas Artes

Eventos

E N E R I

Transcorrerá de 12 a 15 de maio próximo, na atraente cidade de Belo Horizonte / MG, a 10ª edição do Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais (ENERI), ambientado no Centro de Convenções (Minascentro), o qual abrigará ilustres convidados que proferirão palestras para os internacionalistas presentes ao evento.
Em paralelo ao ENERI transcorrerá, de 13 a 15 de maio, o ENEJ-RI – Encontro Nacional das Empresas Juniores de RI.
Por sua vez, o IV ENEPRI também ocorrerá de 13 a 15 de maio, reunindo profissionais e pesquisadores de relações internacionais. A Federação das Indústrias Mineiras será a sede do encontro, organizado em seis grupos de trabalho, e contará com o apoio da OEA, CEBRI, Fundação Konrad Adenauer, dentre outras instituições.

FEJESP prestigia Febasp Jr – RI

Os diretores e conselheiros administrativos da Empresa Júnior de Relações Internacionais do Unicentro Belas Artes foram diplomados dia 17 de março p.p., em evento que contou com o apoio da FEJESP – Federação das Empresas Juniores do Estado de São Paulo, representada pela diretora-presidente, Joice Toyota, e pelo diretor-administrativo, Ricardo Pacheco.
Após a cerimônia de diplomação, os mencionados diretores promoveram palestra abordando a relevância, implantação e mecanismos de funcionamento de uma empresa júnior.
Confiram a seguir alguns registros fotográficos do evento.
(RFdV)

Site da FEBASP-JR
www.belasartes.br/febaspjr-ri

Uma questão de métodos

Somos todos ignorantes

Como você reagiria ao ser acusado de ignorante? O mais provável seria não aceitar essa adjetivação. Não concordaria, em princípio, mas no calor da discussão, esbravejaria, espumaria de raiva como naquele “mal secreto da cólera que espuma a dor que mora n’alma…”, ficaria vermelho e continuaria, veementemente, a negar a acusação.
Embora seja essa a reação esboçada pela maioria das pessoas, senão todas, nosso propósito com esta comunicação é demonstrar que somos todos ignorantes, uns mais outros menos, mas não deixamos de sê-lo em absoluto, conforme denotará o transcorrer do texto até suas últimas frases
Prega o senso comum que toda regra tem lá sua exceção e talvez aqui resida o grito de misericórdia dos que pretendem escapar da ignorância. De nossa parte, lamentamos antecipar, nem isso dissipará a questão, afinal, trata-se não de uma regra, mas de uma adjetivação. Enfim, continuaremos ignorantes.
No traslado do conhecimento, vale dizer, do senso comum para a ciência, e portanto, apoiando-nos em terreno mais firme, aonde existem regras, critérios, métodos, teorias, leis e hipóteses, e estas últimas são passíveis de provas, arriscando-se à refutação, para além da comprovação, construiremos algumas premissas na intenção de escaparmos da ignorância.
Diria o acusado em sua autodefesa, eu não sou ignorante, pois jamais cometi alguma estupidez, algum ato de violência contra quem quer que seja, nem tampouco agredi vivente algum, seja ele racional ou irracional.
Neste momento, ao deixarmos o ônus da prova para o acusado, a confusão aumentou, pois o mesmo levou a discussão para terreno nada sólido ao desviar-se da acusação. Por certo agiu inconscientemente sem se dar conta de que o estúpido, o violento também é ignorante, mas o inverso nem sempre é verdadeiro.
Continuamos então ignorantes, mas elevemos o nível da discussão, convidando para o debate mais dois acusados e suas acusações mútuas. O primeiro inicia sua exposição: _ Vossa Senhoria habita na ignorância, pois não enxerga o jogo de soma positiva presente no comércio internacional; desconhece as maravilhas do mercado (produtor, consumidor, trabalhista, monetário, de divisas, de capitais, nacional, internacional, global etc.) com sua auto-regulação, seu equilíbrio no longo prazo; não crê na harmonia de interesses e ainda se recusa admitir que a economia une enquanto a política divide os povos, as nações.
Por sua vez, o outro interlocutor assim se exprime: _ Vossa Senhoria além de ignorante também é cego, pois esse seu mercado me parece bem próximo de uma crise de identidade, assim como não contempla a existência de pessoas, parecendo operar no vácuo, desprovido até mesmo de uma moldura jurídica; a meu ver, o comércio internacional está mais para um jogo de soma zero e mesmo na ocorrência de ganhos mútuos, por certo não serão na mesma proporção; quero ver essa harmonia de interesses acontecer desprovida do uso da lei, emanada daquele que detém o monopólio legítimo da força; enfim, quero ver como seu mercado reagirá à concorrência de um competidor externo, mais avançado técnica e financeiramente, e então, clamará ou não por aquele monopolista a que me referi há pouco e até mesmo pela proteção divina?
Neste momento, e para o bem do diálogo científico, convidamos alguém com munição para acalmar os mais exaltados. Valemo-nos de Habermas com seu Sprachethik (regras de conversação), ao demarcar limites para um diálogo civilizado: “Não minta; preste atenção; não burle; coopere; não grite; deixe que falem os demais; seja imparcial; explique-se quando perguntam; não recorra à violência ou conspiração em auxílio de suas idéias”.
Não obstante, lamentamos desapontar ao leitor, pois esse Sprachethik também não é a chave para escapar da ignorância, a qual felizmente tem limites; ocorre no momento em que o crepúsculo da ignorância cumprimenta o alvorecer do conhecimento, pois ignorância nada mais é do que a falta de conhecimento. A propósito, você sabe quem é o autor do soneto Mal Secreto, aludido no primeiro parágrafo?
Nessa seara do conhecimento costumava se divertir o saudoso antropólogo brasileiro, Darcy Ribeiro, quando brincava de afirmar que um feirante sabe muito mais que um doutor, na medida em que o primeiro conhece um pouquinho de cada tema, enquanto o segundo, conhece muito de um tema só.
Brincadeiras à parte, o fato é que o conhecimento também é relativo; logo, a ignorância não poderá ser absoluta. Assim, há os mais e menos sábios, ou se preferir, os mais e menos ignorantes, porém ignorantes somos todos, afinal ninguém sabe tudo. Incorre em auto-engano quem afirma (ou pensa) saber tudo.
Esse tipo de auto-engano às vezes transparece como ignorância dissimulada, tipificada pelo interlocutor que intenta menosprezar as idéias adversárias e/ou provenientes de outra esfera do conhecimento a qual pouco conhece, a exemplo do cientista político ignorante em economia e do economista que desconhece a política. Na realidade, ambas as esferas são mais complementares que excludentes, afinal, espelham as duas faces de uma mesma moeda, a sociedade. Não obstante, mesmo entre os próprios economistas ocorre ignorância dissimulada quando o véu ideológico impede a visualização/aceitação de paradigmas concorrentes/alternativos.
E para encerrar essa nossa séria brincadeira, lembramos daquele passeio na floresta em que um especialista em botânica era guiado por um caipira como se a ignorância iluminasse a sabedoria. Havia umas duas horas que o botânico, com pretensões exibicionistas, indagava sobre o nome científico das plantas, e diante do desconhecimento do caipira, ele exclamava: _ quanta ignorância!
Demorou pouco e ambos se depararam diante de um rio transbordante, o qual teria de ser atravessado a nado. O botânico se apavora por não saber nadar, quando o caipira vem em seu socorro, dizendo: _ Posso não saber o nome das plantas, mas afogado jamais morrerei; vejo que o doutor conhece cada planta, embora se perca na floresta; e como já o guiei até aqui, não me custa transportá-lo no meu ombro à outra margem do riacho.
Mas que mundo de contrários e de contraditórios. Eis a dialética. E no balanço final de contas, ainda somos todos um bocado ignorantes.

Raimundo Ferreira de Vasconcelos
Doutor em sociologia econômica e mestre em economia política. É coordenador e docente do curso de relações internacionais do Unicentro Belas Artes.

Resenhas & Sinopses

Chutando a Escada

Por *Raimundo Ferreira de Vasconcelos

Chutando a escada foi o título escolhido por Há-Joon Chang para seu atualizado e oportuno livro que tem ainda por subtítulo, a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Ao longo de suas 266 páginas, o autor nos estimula a fugir do pensamento único, encetado pelo mainstream econômico, capitaneado pelas instituições de Bretton Woods, e que corrobora a idéia do fazes o que digo, mas evitas o que fiz(emos) em busca do desenvolvimento.
Tal “chute na escada” refere-se a uma metáfora empregada pelo economista alemão, Friedrich List, em sua obra de cunho nacionalista intitulada de, O Sistema Nacional de Economia Política (1841), na qual já identificava o protecionismo imanente às políticas comercial e industrial, praticadas pelos principais países ocidentais, à época. O próprio Chang chama atenção para as críticas de List debruçadas sobre o então berço do liberalismo, representado pelos Estados Unidos e Inglaterra, ao denotar que esta última fora a pioneira a aperfeiçoar os argumentos em defesa da indústria infante ou nascente.
Ancorado na evolução histórica dos países ricos, além de amplas evidências estatísticas e fontes bibliográficas, Chang nos mostra o quão diferente é o discurso da prática, quando visualizamos os caminhos trilhados pelas nações do Norte, rumo ao desenvolvimento, denotando ainda, incoerências no discurso “impositivo” destas mesmas nações, quando se referem às políticas e instituições a serem implementadas pelas nações do Sul na busca da riqueza e do desenvolvimento.
Ao longo dos quatro capítulos, focados no século XIX e início do séc. XX, mas dilatando-se o olhar – a montante e a jusante – em certos momentos, seus leitores dar-se-ão conta de que o mundo rico de hoje já foi muito protecionista, intervencionista (via Estado), pouco ou nada democrático; utilizou trabalho infantil (crianças entre nove e catorze anos de idade, trabalhavam de 12 a 16 horas diárias); desrespeitou a lei de patentes e os direitos autorais; seu sistema judiciário e os bancos centrais nada tinham de independência política; suas instituições eram frágeis e até menos evoluídas quando comparadas às suas congêneres nos países em estágios semelhantes de desenvolvimento.
O primeiro capítulo de Chutando a Escada introduz o leitor ao tema, ao enfocar as “boas políticas”, e esse qualitativo quer dizer afinadas com o Consenso de Washington, e as “boas instituições”, corroboradas pelo mercado, democracia, judiciário e banco central politicamente independentes, as quais subsistem no mundo desenvolvido, sobretudo no de origem anglo-saxão. Estas “boas” políticas e instituições serão conducentes – segundo o establishment – ao desenvolvimento econômico ao serem implementadas pelo mundo subdesenvolvido.
Dito de outro modo, na atualidade perdura a idéia de que tudo aquilo que seja benéfico aos EUA também o será para as demais nações. O receituário é bem conhecido: livre mercado, democracia, reformas fiscais, trabalhista, previdenciária, independência do banco central, privatizações, reduções do custo-país e do custo de conflitos, a exemplo de reformulações na lei de falências etc. E nessa tentativa forçada de se igualar os desiguais, evidentemente há erros tanto de diagnóstico quanto de prognóstico e o que é pior, a indicação de medicamento único para males tão distintos.
O autor prossegue com algumas questões de natureza metodológica, ao ressaltar a relevância do método histórico, de raciocínio indutivo, para se analisar o desenvolvimento econômico, mas lamenta-se pelo fato de tal raciocínio ter sido arrestado pelo pensamento neoclássico, o qual também rejeita o referido aparato analítico, tornando, portanto, atemporal as discussões acerca do desenvolvimento. E o desfecho deste primeiro capítulo remete a um detalhamento dos três outros que compõem a obra.
No capítulo segundo, o mais longo de todos, o autor nos remete à perspectiva histórica das políticas industrial, comercial e tecnológica praticadas pela Grã-Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, França, Suécia, Bélgica, Holanda, Suíça, Japão, Coréia e Taiwan.
Embora a Alemanha seja visualizada como o nascedouro das práticas protecionistas à indústria nascente, verificamos que esse protecionismo assumiu maior relevância para a indústria infante de Estados Unidos e Grã-Bretanha.
Chama atenção, também, o fato de países como a Suíça e a Holanda terem adotado o reconhecimento de patentes apenas em 1907 e 1912, respectivamente. Não foi à toa que o pequeno território suíço alcançou notável desenvolvimento na indústria químico-farmacêutica (pirateando aos alemães), além de extraordinário sucesso na indústria alimentícia, e a Nestlé é um bom exemplo disso, através de investimentos externos diretos, atraídos pelo não reconhecimento de patentes.
Também é digno de nota que, no século XIX, o livre comércio tenha sido imposto por países desenvolvidos – papel protagonizado pela Grã-Bretanha – aos países subdesenvolvidos e com pretensões de se industrializarem, os quais foram obrigados a assinar os denominados “tratados desiguais”, e que consistiam na adoção de 5% como teto tarifário.
Na América Latina, o Brasil foi o primeiro a se submeter aos referidos tratados, em 1810, e portanto, logo após a tão decantada abertura de nossos portos, em 1808. De tal submissão também foram vítimas a China, o Sião (atual Tailândia), a Pérsia (atual Irã), o Império Otomano (atual Turquia) e o Japão que, com o mesmo ferro, feriu a Coréia, em 1876.
Já o capítulo terceiro enfoca a perspectiva histórica da “boa governança” proporcionada pelas instituições. E mesmo reconhecendo a ausência consensual na correlação direta entre desenvolvimento econômico e progresso institucional, o autor traça um perfil institucional de países hoje desenvolvidos à época em que ainda estavam na busca do desenvolvimento, enfatizando primordialmente instituições como a democracia, a burocracia e o judiciário, os direitos de propriedade, a governança empresarial, as instituições financeiras públicas e privadas, além das instituições previdenciárias e trabalhistas.
Pelo comparativo do processo de desenvolvimento institucional nos países desenvolvidos com o dos atuais países em desenvolvimento, o autor conclui que estes, em muitos casos, apresentam um padrão superior aos dos primeiros. Para citar apenas o exemplo da democracia, vejamos a época de adoção do sufrágio universal em alguns países: Alemanha, França e Itália (1946); Japão (1952); EUA (1965); Portugal e Canadá (1970); Suíça (1971); Índia, Paquistão, Bangladesh, México, Venezuela e Argentina (1947); Peru (1956); Colômbia (1957); Brasil (1977).
O autor contribui aqui para aguçar o debate sobre a adoção do sufrágio universal pelo Brasil ao apontar como demarcação o ano de 1977. Na realidade, há quem admita isso já em 1894, quando da primeira eleição republicana em nosso país; já outros apontam para o ano de 1933, quando se concedeu à mulher brasileira o direito de votar, mas permaneceram excluídos desse direito tanto os analfabetos quanto parte do estamento militar. Decorrente disso, alguns analistas preferem citar o ano de 1988 como sendo àquele em que, de fato, o Brasil adota o sufrágio universal. E sobre este último ponto de vista comunga o autor desta resenha, não sem antes sublinhar que democracia completa, no meu modo de entender, não é sinônimo de sufrágio universal, pois não basta a democracia política se estão ausentes as democracias econômica e social.
No quarto e último capítulo, batizado de lições para o presente, o autor reafirma o argumento de que os países desenvolvidos praticaram exatamente o oposto do receituário hoje indicado aos países em desenvolvimento. Ele na verdade reedifica historicamente a escada protecionista que as nações avançadas preferem esquecer, mas o que aos olhos escapa, a memória alcança.
Uma das fragilidades do texto, admitida pelo próprio autor, reside na utilização da renda per capita (com suas reconhecidas limitações) para aferir estágios de desenvolvimento; situação semelhante ocorre quando o autor correlaciona positivamente o progresso institucional com o desenvolvimento econômico. E uma outra debilidade, desta feita não assumida, encontra-se no reducionismo do sufrágio universal como medidor do estado democrático. Não obstante, nenhuma delas e nem mesmo o seu conjunto é capaz de comprometer o texto em sua amplitude e relevância, nem o objetivo a que se propôs seu autor, qual seja, o de provar com dados e argumentos convincentes que os países desenvolvidos, de fato, chutaram a escada (e continuam a fazê-lo) pela qual atingiram o topo do desenvolvimento, além de reafirmar a importância do método histórico, concreto, indutivo, na análise da trajetória desenvolvimentista.
Trata-se pois de uma obra merecedora da atenção de acadêmicos, police makers e estudiosos em geral dos processos de desenvolvimento, e em particular, daqueles que se inquietam com o atual pensamento único, o qual tenta igualar os desiguais, além de sugerir medidas para acelerar o desenvolvimento quando antes o retardam.
*. Economista, doutor em sociologia econômica e mestre em economia política.

Sobre a obra:
Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento
em perspectiva histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
Título original: Kicking Away the Ladder – development
Strategy in historical perspective.
Tradução de Luiz Antônio Oliveira de Araújo.
Formato: 14 x 21 cm; 266 pp. R$39,00

Sobre o autor:
Ha-Joon Chang é diretor-assistente de estudos sobre o desenvolvimento na University of Cambridge. Foi consultor da ONU, do Banco Mundial e do Asian Development Bank. Publicou vários artigos sobre a teoria do Estado, do mercado e das instituições, dentre outros sobre as economias em transição.

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Diretrizes curriculares em RI

Muitos já se deram conta das alterações promovidas na matriz curricular do curso de relações internacionais do Unicentro Belas Artes. Queremos aqui assegurar que não houve alterações na essência do currículo. Na verdade fizemos apenas um ajuste. Alguns Tópicos Especiais em disciplinas adquiriram denominação mais precisa, a saber.
Negociações Internacionais resultou da junção entre Tóp. Esp. em Política Internacional I e II.
Geopolítica Latinoamericana e América Latina e Desenvolvimento resultaram de Integração Regional I e II, respectivamente.
Análise de Tratados e Convenções Internacionais substituiu Tóp. Esp. em Teoria das Relações Internacionais, bem como, em Segurança e Riscos Transnacionais (inseridos em Estratégia e Segurança).
Logística e Projetos Internacionais resultou da adaptação de Elaboração e Viabilidade de Projetos Internacionais.

Grupos de Estudo / RI

Acadêmicos do nosso curso de relações internacionais mobilizam-se entre si para formar grupos de estudo, objetivando ampliar conhecimentos, além do engrandecimento pessoal e profissional.
Na turma do primeiro semestre/matutino (AM1RI) foram criados quatro Grupos de Estudo na área lingüística, para estudar francês, alemão, russo e hebraico.
O idealizador e organizador dos grupos foi o estudante Rodrigo Moura, o qual ainda atua como instrutor de alemão; Paulo Watanabe (alemão e francês); Cinthia Ludovico (russo); e, Leonardo Rosemberg (hebraico).
Já o Grupo de Estudo sobre Política Externa Brasileira (GPEB) reuniu estudantes do 3º semestre/matutino (AM3RI) e do 4º semestre/noturno (AN4RI), sob a liderança de Luiz Fernando Silva Pinto e seus colegas Andor Ascer, Juliana Seraphim e Daniel Faviere. Este Grupo conta ainda com o apoio logístico e orientação do Prof. Me. Feliciano de Sá Guimarães, estando aberto à colaboração de outros docentes e discentes, e também, ao diálogo com a comunidade externa de internacionalistas.
Parabenizamos a todos pela iniciativa, a qual é um exemplo a ser imitado, e desejamos-lhes sucesso nessa edificante empreitada.

Expediente

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